No início dos anos 90 do séc. passado fui a Santa Maria integrado num pequeno grupo de caçadores micaelenses para realizar uma caçada nesta ilha, a convite do saudoso Chefe da Polícia, o Chefe Lima e como era conhecido.
Nunca tinha caçado em Santa Maria, porque até então, as ilhas onde praticava o ato cinegético, tinham sido em São Miguel, nas Flores, na Graciosa e no Pico, sabendo eu que naquela altura a ilha de São Jorge e a ilha Terceira também tinham uma boa densidade de coelhos bravos, mesmo depois de terem sido afetadas por surtos hemorrágicos, aliás, e como viria a confirmar quando cacei mais tarde nestas duas ilhas.
A única ilha dos Açores que até 2014 nunca tinha sido manchada por nenhuma virose, incluindo a hemorrágica, era a ilha das Flores, constituindo na altura uma exceção pela positiva nos Açores e na Península Ibérica e o que explica que quando entrou lá a hemorrágica o grau de mortandade dos coelhos bravos tivesse sido muito próximo da extinção.
Esta situação representou um grande revés para o nosso património natural e animal. Presentemente, a maioria das ilhas açorianas tem uma baixa densidade de coelho bravo, não em consequência da pressão da caça, mas em resultado dos mais recentes surtos de hemorrágica e por nesta fase atual a recuperação desta espécie bravia e cinegética estar a ser mais difícil e muito mais lenta do que em surtos anteriores.
A única ilha que apresenta nos dias de hoje densidades mais razoáveis de coelhos bravos, mas localizadas e dispersas é a ilha de São Miguel, nas outras ilhas as densidades demográficas do coelho bravo são uma pequeníssima amostra do que foram no passado.
Este quadro que temos presentemente demonstra bem que a caça quando exercida com regras baseadas em estudos científicos e empíricos, com calendários venatórios adequados, com ordenamento do território, não só não coloca em risco a sustentabilidade das espécies cinegéticas, mas inclusivamente pode contribuir para que algumas delas continuem a existir em Portugal e por este Mundo fora, ao contrário das viroses, como acontece com a hemorrágica, que pela elevada mortandade que provoca pode e está a por em causa muitas das espécies de animais bravios e como é o caso coelho bravo, e outros animais que tem na base da sua dieta alimentar o coelho.
Quase sempre estas viroses e consequentes epidemias são fabricadas em laboratório e quando aplicadas no terreno propagam-se com grande facilidade pelo mundo fora graças à globalização e são atualmente a principal causa da diminuição do coelho bravo nos Açores, na Península Ibérica e mesmo no mundo.
Mas regressando a Santa Maria, que nos anos 90 do séc. passado foi a Meca dos caçadores do coelho bravo para muitos caçadores micaelenses e açorianos, continentais e emigrantes dos Estados Unidos da América e do Canadá, esta primeira caçada que já referi ocorreu no lugar dos Anjos na companhia do Chefe Lima, acompanhado pelos irmãos Bragas, o António, o José e o João, estes sim, verdadeiros caçadores.
A matilha dos cães de caça com que caçamos só tinha um podengo puro a Vardasca, o resto eram tudo cruzados de podengos com outras raças indefinidas, de que recordo com saudade o Bel, um cão que numa caçada posterior em que fui protagonista cobrou mais de 100 coelhos bravos.
Neste dia, não durou muito tempo para que os muitos Kms, que já naquela ocasião tinha nas pernas atrás de coelhos bravos na Achada das Furnas, no Nordeste, nas outras Ilhas e também no Oeste do Continente e no Alentejo me indicassem que estava na presença de caçadores que sabiam o que estavam a fazer, e então o Senhor Braga dos Anjos era um caso à parte, pela mestria como conduzia os cães, nos pormenores como sabia interpretar os terrenos, incluindo no posicionamento dos caçadores, conhecimento da importância do tempo no comportamento dos animais, respeito pela natureza e um grande sentido de responsabilidade para com a sustentabilidade do coelho bravo. Este dia foi o princípio de uma grande amizade, já que passei depois a ir caçar com ele dezenas de vezes, mas agora na companhia também dos meus podengos, que caçavam juntamente com os cães dele, e com quem aprenderam a caçar nas paredes e montes de pedra basáltica, onde o Senhor Braga era um reputado especialista.
Passei a ir frequentemente a Santa Maria no barco dos Pareces, na SATA, e depois nos Barcos de passageiros e viaturas, que então existiam e facilitavam muito o intercâmbio entre São Miguel e Santa Maria, em qualquer um destes meios de transporte fazia-me sempre acompanhar pelos meus cães de caça, que não raras as vezes dormiam depois em Santa Maria no meu quarto nesta ilha do sol, do barro e dos coelhos.
Isto tinha uma explicação é que eu sabia se os meus cães se soltassem à noite por qualquer motivo, com a quantidade de coelhos que Santa Maria tinha, ia ter um problema muito sério, pois tinha tido uma experiência muito negativa com os cães de caça de amigos das Furnas que tinham ido lá caçar comigo, que durante noite se soltaram e o resultado foi mesmo muito mau. Estávamos num tempo em que existiam muitos cães amatilhados em estado selvagem na Zona do Aeroporto e que representavam um perigo para os outros cães e mesmo para as ovelhas.
Neste tempo as histórias de caça e caçadores em Santa Maria eram muitas e recordo com saudade aquele dia em que quando regressávamos à estrada dos Anjos já com a caçada concluída, encontrei o Senhor Teixeira de São Miguel sentado num muro de pedra e perguntei-lhe, então, esta caçada? e ele respondeu: assim, assim, entretanto, pedi-lhe para ele não se mexer, inclinei-me e com as mãos mesmo debaixo dos pés dele apanhei um coelho bravo vivo que lá estava no meio das ervas e sem ele se aperceber, como esta história foram várias.
Neste período conheci dezenas de caçadores e aspirantes a caçadores na ilha de Santa Maria vindos do exterior, uns melhores outros piores, e até muitos que não eram caçadores, mas sim candidatos a matadores. Fiz amizades nestas caçadas que duram até hoje, sendo que alguns já deixaram o mundo dos vivos, descobri a riqueza da gastronomia mariense através da Dona Conceição: as vejas, os polvos, as bicudas, os enchidos, o coelho guisado e assado, as alheiras, os biscoitos de orelhas, os búzios de Santa Maria e as cavacas, a que acrescento o extraordinário caldo de nabos que degustávamos no Restaurante do Senhor Fontes cozinhado superiormente pela sua esposa. O Senhor Fontes é irmão da Dona Conceição a esposa do Senhor Braga, o Fontes no campo da gastronomia e da restauração foi um homem adiantado em relação ao seu tempo. Estes nossos encontros de gastronomia fossem na casa do Senhor Braga, no restaurante do Senhor Fontes, no Restaurante do falecido Gilberto junto à Câmara Municipal de Vila do Porto, numa das diversas Copeiras que existem em Santa Maria, ou, mesmo numa tasca nos Anjos, acabavam quase sempre com cantigas ao Desafio, em que os protagonistas eram o Senhor Braga, eu próprio, o Jorge e o Luiz, que, entretanto, faleceu, e com muita assistência que se juntava à festa. O José Frias, o saudoso Henrique Pacheco e o Juiz Mesquita, adoravam estes nossos encontros. Com o falecimento prematuro do irmão mais novo do Senhor Braga, o João, a caça continuou, mas as cantorias terminaram.
Toda a nossa gastronomia tinha quase sempre a mão do Senhor Braga, já que era produto da caça, da pesca, das matanças do porco, bem como as batatas, as couves que ele cultivava e até o vinho de cheiro era caseiro.
Nos intervalos das caçadas passei a acompanhar o Senhor Braga na pesca dos polvos no calhau, testemunhando métodos de captura ancestrais, verdadeiramente extraordinários, e sustentáveis, mas para desgosto dele só fui uma vez com ele à pesca das vejas, pois quando começamos a descer a encosta para o mar as pernas começaram-me a tremer e jurei que nunca mais se repetiria. O irmão mais velho do Senhor Braga, o Senhor António, é também um grande pescador de vejas e há bem pouco tempo e do alto dos seus 90 anos ainda também as pescava. Aprendi com o Senhor Braga que a vida no mar e a sustentabilidade das espécies marinhas em Santa Maria e nos Açores poderia estar em risco se não houvesse estudo e controlo nos meios\artes de pesca e intensidade de captura das espécies, incluindo das vejas. Era um tema que o preocupava muito.
Foi também com o Senhor Braga que descobri o Espírito Santo de Santa Maria, que ele coordenava na condição de Mordomo, ou, não, com uma devoção e eficiência extraordinárias, festas muito diferentes das que conhecia em São Miguel e mesmo em outras ilhas, com um toque especial na organização e confeção das sopas e até nas cantigas dos Foliões, não fosse a ilha de Santa Maria a primeira a ser povoada nos Açores. A utilização do endro em alguns pratos da gastronomia mariense confere-lhe um sabor muito característico.
O Senhor Braga destacava-se na organização das caçadas, na pesca, na festa do Espírito Santo, foi procurador de dezenas e dezenas de emigrantes, sempre com uma grande generosidade, com uma palavra amiga de aconselhamento, um enorme sentido de partilha, e um respeito imenso para com a natureza e o mar, e é por tudo isso que todos os anos no dia 27 de agosto rumo a Santa Maria para lhe dar um abraço de amizade no dia do seu aniversário e que este ano representa 89 primaveras. Levanto-me neste dia às 4h30 da manhã para apanhar o voo das 6h e pouco, sem estar acompanhado dos meus outros amigos cães, mas levo no coração um bocado do melhor que a minha vida teve e que foi partilhada com o Senhor Braga.
Como chego a Santa Maria a horas impróprias, aproveito o amanhecer para revisitar alguns dos locais onde fui muito feliz e ir à Maia dar um abraço ao Senhor António Frias, que nesta época do ano está sempre por cá, e é um homem que acorda cedo, a que acresce ser irmão do José Frias, este sim caçador, depois de pormos a escrita em dia, regresso aos Anjos para estar com o Senhor Braga, convivermos e apreciarmos juntos o painel que ele tem na sua sala de jantar com vários testemunhos de momentos que passamos no Risco, e em tantos outros lugares de Santa Maria, para no fim do dia retornar à ilha de São Miguel com um misto de nostalgia e alegria, e tendo a certeza que esta vida passa mais rápido do que um voo de uma narceja.