Há um jogo de tabuleiro na ilha Terceira, nos Açores, que junta todas as semanas dezenas de pessoas, de todas as idades, para participar em torneios onde, mais do que os prémios, pesa o convívio.
Em outubro, quando acabam as festas populares e as touradas à corda na ilha, arrancam os torneios de marralhinha, que se estendem até maio do ano seguinte, percorrendo várias freguesias.
O jogo feito em madeira, em que as peças são berlindes, já faz parte dos serões nos cafés da ilha, ao lado da sueca e do dominó, e atrai dezenas de pessoas aos torneios, que ocorrem praticamente todas as semanas.
Há cerca de um ano que Paulo Toste, Nuno Ventura e Roberto Lourenço organizam os encontros, ainda que nunca dispensem sentar-se à mesa para jogar.
Participantes frequentes há vários anos nestes torneios, foram desafiados a organizá-los, quando os eventos foram interrompidos devido à morte do anterior responsável, João Teixeira.
“As pessoas falaram connosco para continuarmos a organizar, porque já sentiam falta disto. Começámos e até hoje tem sido um sucesso”, conta, em declarações à Lusa, Paulo Toste.
É sábado à noite e na Casa do Povo das Lajes, no concelho da Praia da Vitória, ultimam-se os preparativos para mais um torneio.
Em cada mesa são colocadas duas marralhinhas, tabuleiros de madeira, em forma de cruz, com casas esculpidas, por onde se movimentam as peças, que são simples berlindes.
Cada jogador tem cinco berlindes, que têm de ser colocados em casas específicas, depois de darem a volta a todo o tabuleiro, ainda que, com sorte, o caminho possa ser encurtado, com uma ida ao meio.
“Para tirar uma peça de casa tem de sair 1 ou 6. Para ir ao meio tem de sair 1 ou 6 e para sair do meio tem de sair 1 ou 6”, explica Paulo Toste.
O número de casas a avançar é ditado pelo dado, lançado a cada jogada, com direito a repetição se sair o 6.
Quando o berlinde calha numa casa já ocupada, a peça do adversário é ‘comida’ e regressa ao ponto de partida.
Os jogos são disputados por equipas de duas pessoas e acabam quando ambas ‘arrumam’ todas as peças.
À medida que a hora marcada se aproxima vão chegando cada vez mais pessoas e Nuno Ventura tem de montar mais duas marralhinhas, para dar lugar aos 36 pares inscritos, um número recorde desde que os três amigos começaram a organizar estes eventos.
Com todos os participantes sentados, Roberto Lourenço anuncia as regras e arranca o primeiro de cinco jogos, que não têm hora para acabar.
A sala é invadida pelo som de mais de uma dezena de dados a bater em simultâneo nas mesas, que abafa as vozes de quem não resiste a dar conselhos ao parceiro de jogo.
Há quem percorra quilómetros e não perca um torneio, como é o caso de João Cordeiro, que participa há dois anos.
“É diferente e interessante. É ‘nice’. O convívio é bom”, explica, garantindo que já fez “muitos amigos” nestes encontros.
As palavras em inglês que vai intercalando na conversa revelam os muitos anos de emigração, antes de se reformar e regressar a casa.
“Fui com 17 anos para o Brasil, vivi em São Paulo e no Rio de Janeiro. Fui para Los Angeles, em 1968, e aí vivi toda a vida”, conta.
Em poucos torneios, nesta época, João Cordeiro já conquistou três prémios, um em primeiro e dois em segundo lugar. O truque? “’Well’, muita atenção e muita sorte”, diz, a rir.
A sorte é a resposta mais ouvida, quando se pergunta sobre o segredo deste jogo.
“É preciso saber alguma coisa, mas se a pessoa atirar 100 vezes o dado e nunca sair 1 ou 6 não ganha”, aponta Nuno Ventura.
“O truque é ter sorte. Às vezes há estratégias, estar atento ao que vai acontecer, avisar o colega antes de jogar, mas tudo pode acontecer”, acrescenta Roberto Lourenço.
Há sempre alguém novo que se junta aos muitos repetentes nestas andanças. Só no ano passado, passaram pelos torneios mais de 200 pessoas diferentes.
Gabriela Oliveira e Honorato Borges descobriram os torneios este ano e ainda não perderam um evento.
A prática não é muita, por isso acumulam apenas um terceiro lugar, mas não são os prémios que os fazem sair de casa. “É um divertimento, um passatempo, um convívio com as pessoas. É uma distração”, justifica Honorato.
E mesmo quando não há competição, o casal joga “praticamente todos os fins de semana, em convívio com a família”.
A maioria dos participantes chega já com a equipa formada. São casais, familiares ou amigos e não há limite de idades.
“A pessoa mais velha tinha 80 e tal anos e jogava com o seu neto de 10 anos”, recorda Roberto Lourenço.
Até já houve quem chegasse de fora da ilha. “Tivemos um casal da Irlanda. São portugueses e têm cá família. O marido nunca tinha estado nos Açores e disse: tenho de jogar um torneio de marralhinha”, lembra Paulo Toste.
A filha de Paulo Toste, Carolina, começou a jogar com o pai aos 12 anos e, juntos, conquistaram vários troféus. “Desde que deixei de jogar com a minha esposa e com a minha filha nunca mais ganhei”, brinca.
Hoje, com 21 anos, Carolina joga com o namorado, Ricardo Sousa, de 23 anos, e destacam-se como uma das equipas mais jovens no torneio. “É um jogo que dá para todas as idades, toda a gente gosta”, defende.
Ricardo sublinha que o convívio é o mais importante, mas recorda com orgulho os dois troféus já conquistados.
A tática? “É o que der mais certo na hora”. E explica: “O jogo pode estar virado para a gente e depois o dado começa a ajudar a outra equipa e ela ganha.”
Se já brigaram por causa da marralhinha? Já, admitem, entre gargalhadas, mas nada que dure muito tempo ou que os impeça de voltar a jogar.