A encosta da Baía das Águas, em Angra do Heroísmo, nos Açores, conta a história do sismo de 1980, nas muitas camadas, que o mar vai revelando, onde se veem pedaços de casas e de memórias, destruídas pelo terramoto.
A baía localizada mesmo à saída de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, foi um dos locais escolhidos para albergar os destroços das centenas de casas da cidade, que a 01 de janeiro de 1980 não resistiram a um terramoto de 7,2 na escala de Richter.
Passados 45 anos do sismo, muito do entulho despejado continua enterrado na baía, mas aos poucos o mar vai soltando alguns elementos.
A cantaria, os azulejos, as vigas e as telhas das casas misturam-se hoje com o calhau que é banhado pelas ondas.
Na encosta é possível identificar várias camadas, com pedras que se percebe que já tiveram outro uso e um ou outro objeto que parece tentar desprender-se: canos, roupas, toalhas de mesa, embalagens de plástico.
João Rocha tem 30 anos. Nasceu depois do sismo de 1980, mas já se cruzou, por várias vezes, com as histórias de quem o viveu.
Desde criança que faz caça submarina e quase todos os dias passeia junto ao mar, recolhendo o lixo que encontra pelo caminho.
“Aquilo que duas mãos conseguem trazer eu trago”, afirma, em declarações à Lusa.
Há mais de 10 anos que frequenta a Baía das Águas, onde encontra artes de pesca arrastadas pela corrente dos Estados Unidos da América ou de Marrocos, mas também objetos com dezenas de anos, como garrafas de vinagre, que deixaram de ser fabricadas na década de 60 ou 70.
“Encontrámos mais ou menos uma dúzia de garrafas e todas no mesmo estado. Como estiveram depositadas no meio dos destroços, o processo erosivo foi quase nulo, porque o plástico dura muitos anos. Podemos afirmar que este plástico está ali há sensivelmente 40 anos” conta.
Os objetos que remontavam a outra época fizeram despertar a curiosidade do jovem ativista que procurou saber a sua origem.
“Fomos falando com pessoas antigas que frequentam esta zona e apercebi-me de que era um dos pontos onde foram depositados os destroços do sismo de 80”, revela.
José da Ponte, 67 anos, foi uma das pessoas com quem o jovem falou. Vive há meio século na freguesia de São Bento e recorda-se de uma Baía das Águas diferente.
“O mar chegava aqui atrás”, garante, no miradouro da Baía das Canas, no cimo de umas escadas que dão acesso às várias baías daquela zona.
Tem bem presente na memória a imagem dos “camiões grandes”, que chegavam ao local e despejavam “tudo para o mar”.
Na altura, não existiam muros de contenção, apenas um terreno baldio, onde qualquer pessoa podia encostar um camião e despejar.
Já antes do sismo se deitava lixo ao mar naquela zona, mas a dimensão do entulho descarregado foi tal que a encosta ganhou mais alguns metros.
“Toda aquela barreira, à volta de 50, 60, 70 metros de altura está toda composta por entulho. E encontram-se muitos objetos no meio. Eles enchiam de pá, não escolhiam”, salienta João Rocha.
Junto com os destroços das casas, vieram misturados objetos do dia a dia, que a urgência da reconstrução não permitiu separar.
Desde caixas de pirolitos antigas a recipientes de plástico cinzentos utilizados pelos militares na Base das Lajes, que os locais reutilizavam para guardar leguminosas, o jovem já encontrou de tudo um pouco.
“Recordo-me que das primeiras coisas que recolhi aqui eram umas palas dos carros Toyota e Range Rover já muito antigas”, adianta.
Brinquedos, fragmentos de solas, pneus, toalhas de mesa, partes de alcatifas, roupa… A lista é grande e por muitos quilos que João já tenha recolhido, há ainda muitas toneladas acumuladas na baía.
“Encontram-se muitas cantarias dispersas, azulejos, partes de casas, algumas vigas, construídas com o material que havia. Dá para perceber que não é o cimento e o betão armado de hoje em dia, é o material que havia na época, o barro, as argilas”, explica.
O ferro e o chumbo desapareceram, porque tinham valor económico, mas as cantarias e os plásticos continuam no local.
“Podemos dizer que levaram daqui toneladas de ferro e chumbo para os sucateiros. Era uma fonte de rendimento”, revela o ativista.
Na pandemia, João Rocha criou um grupo voluntário de limpeza da orla costeira, que pelo menos uma vez por mês recolhe lixo das baías e zonas balneares da ilha Terceira.
Leva às escolas, em ações de sensibilização, alguns dos objetos mais peculiares que foi recolhendo ao longo dos anos, que mostram que há coisas, como as que foram engolidas pelos escombros, naquela tarde de feriado, que podem levar dezenas de anos a degradar-se, ainda assim, menos do que as que levam a sarar as feridas de quem viu as memórias de uma vida desaparecerem em segundos.