Angra do Heroísmo

A cidade de Angra do Heroísmo, nos Açores, respira cultura por estes dias, com espetáculos gratuitos que invadem lojas, cafés e restaurantes, desafiando quem passa na correria do dia a dia a parar por 15 minutos.

A iniciativa é da companhia de teatro profissional Cães do Mar, com sede na ilha Terceira, que realiza pelo quarto ano consecutivo o festival Rua Direita, a decorrer até este sábado.

Este ano, são nove espaços, entre lojas, cafés, livrarias e restaurantes, que acolhem três instalações e seis performances, que se repetem em 94 atuações, de 10 a 15 minutos, durante seis dias.

Na Rua Direita, uma das mais movimentadas da cidade, são muitas as pessoas que entram e saem de lojas, em passo apressado. Em ritmo mais lento, seguem outros tantos turistas, de mochila às costas e telemóvel na mão.

A minutos do arranque das atuações, Ana Brum, diretora artística da Cães do Mar, vai distribuindo panfletos por quem passa.

Talvez por ser hora de almoço, poucos páram, mas ao quarto dia do evento o balanço é positivo.

“Está a correr francamente bem. Temos tido bastante afluência de público, daquele que costumamos ver nos nossos espetáculos, mas também aquele que nunca vimos e que vem à descoberta”, adianta, em declarações à Lusa.

Esta edição tem como tema “Filhos da Madrugada” e todos os espetáculos estão de alguma forma ligados ao 25 de Abril.

Na entrada do Palácio do Conde de Vila Flor, entre um restaurante e uma farmácia, Diana Rosa dança ao som do violino de Derek Nisbet, no espetáculo “Ordem para Desobedecer”.

Desce uma escada coberta de livros, que vai guardando numa pequena mala, à medida que se vai soltando das amarras do véu que enverga.

“Tem a ver com a educação no feminino e aquilo que era negado por constrangimentos sociais às mulheres. Houve muitas mulheres, umas por serem demasiado pobres, outras por serem demasiado ricas, a quem foi negada a ideia do estudo”, explica Ana Brum.

Natural de Angra do Heroísmo, Rosa Lima já é cliente habitual da “Rua Direita”. Assiste praticamente sozinha ao espetáculo, mas sublinha a importância da mensagem transmitida sobre o 25 de Abril.

“É uma forma de chegar junto do público que normalmente não vai a espetáculos. É uma forma diferente de apresentação e os espetáculos são muito bons”, salienta.

As performances ocorrem todas ao mesmo tempo e repetem-se seis vezes ao longo do dia. Quem perdeu a das 11:30, pode esperar pela das 13:00 ou pela das 14:30.

Na mesma rua, uns metros mais abaixo, Bianca Mendes apresenta “Casa Alheia”, na loja Basílio Simões, uma das mais antigas da cidade.

Entre chocolates, frutos secos e especiarias, vendidos a granel, Bianca conta a história de Jaquinda e Manuel, que emigraram para Angola e regressaram sem nada ao país, depois da revolução. Jaquinda é representada por um pincel de caiar e Manuel por uma barra de sabão.

O espetáculo é “um murro no estômago” e há quem se emocione e procure a atriz mais tarde para partilhar a sua história.

“Todas as personagens, apesar de serem objetos, são pessoas reais, histórias reais e frases reais. Quando eu penso nisso e quando encontro o olhar do público que também passou por isso, é muito difícil porque há ali uma identificação muito grande e é muito difícil segurar a emoção”, conta.

Bianca atua pelo segundo ano na loja, que faz também parte do espetáculo. “Eu já atendo as pessoas no intervalo. Se eles estão ocupados, eu mesma já vendo coisas”, brinca.

A peça está mesmo a acabar quando Margarida entra para comprar uns gramas de coco e de bicarbonato de sódio. Não fica para assistir, mas gosta do que vê.

Do outro lado do balcão, José Luís, que vai assistindo enquanto vende, conta que há “uma ou outra pessoa estranha, mas corre tudo bem”.

Alguns turistas páram quando ouvem a voz de Bianca e veem um grupo de pessoas à porta: espreitam, tiram fotos e seguem o seu caminho.

De férias na ilha onde nasceu, Sara de Melo Rocha chega à hora certa para assistir ao espetáculo e quando acaba segue para a próxima paragem.

“O Basílio Simões só por si é um palco maravilhoso. A atriz conseguiu usar muitos objetos da própria loja, que também fazem um bocadinho parte do imaginário português, para falar de uma coisa importante em Portugal, que é a guerra nas colónias e a saída de muitas pessoas de Angola, de regresso a Portugal. Ela tocou em muitos pontos sensíveis e acho que está muito bem conseguido”, defende.

As horas passam e há novo espetáculo. Na esplanada do restaurante Aliança, o músico e compositor madeirense Márcio Faria e a atriz terceirense Lara Costa protagonizam “Uma Ópera Proibida”, em que um pai vê comunismo no livro “O Pónei Vermelho”, na música de Elvis Presley ou num simples biquíni.

Dirk Berger, professor alemão a participar num programa de Erasmus, não compreende uma palavra de português, mas percebeu de que falava o espetáculo.

“Foi muito interessante. Consegui seguir o que estava a acontecer, mesmo sem perceber as palavras”, revela.

Foi acompanhado por Graça Coelho, professora e atriz, que já não perde o “Rua Direita”.

“Gosto muito do trabalho que os Cães do Mar fazem. Acho que fazem muito em prol da comunidade local, em agarrar estes jovens e integrá-los com profissionais da área e é sem dúvida uma mais valia para a cidade”, vinca.

Na plateia está também o grupo de teatro Iuventute Virtutis, da ilha de São Jorge, que encerra o festival no sábado, com o espetáculo Livrei.

Para Andreia Melo, encenadora do espetáculo, o festival é uma oportunidade para abrir horizontes aos jovens que fazem parte do grupo, que têm entre 12 e 19 anos.

“Eles chegaram e disseram: ‘É aqui o teatro? É uma ópera? Como assim?’ Estavam questionar-se. Era um espaço não convencional, um tema não convencional, muito fora do que é comum nas ilhas mais pequenas”, conta.

“É muito importante no sentido de abrir mentalidades. Eles podem até nem continuar neste caminho, mas é importante para eles perceber que há outras coisas a acontecer diferentes do que eles acham normal”, concluiu.

 

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