Gualter Furtado, economista e furnense.
A primeira vez que vi o Dr. António Borges Coutinho, foi num comício da oposição democrática realizado em Ponta Delgada antes do 25 de abril, fui a esta “manifestação” na companhia do saudoso António Arruda das Furnas, não obstante, a nossa diferença de idades, fomos amigos, até ao dia do seu funeral, ele mais velho, com uma forte bagagem cultural, com muita leitura, aprendizagem no Seminário de Angra do Heroísmo e na Faculdade de Direito de Coimbra, antifascista, e com muito relacionamento com opositores ao regime, de que relembro, Borges Coutinho, Jaime Gama, Melo Antunes, Mário Mesquita, José Lamego e Sotto Mayor Cardia. O António Arruda foi um dos que discursou neste célebre comício, um discurso redigido na noite anterior no vale das Furnas, na casa dos pais dele e batido numa máquina de escrever que um familiar meu tinha trazido das Bermudas. Eu tinha àquela data 16 anos de idade. Naquela noite do Comício, o António Arruda estava nervoso, não porque não fosse uma pessoa destemida, culta e de fortes convicções, mas por todo aquele envolvimento que nos tocou a todos. Recordo naquele Comício o tom de voz do Dr. António Borges Coutinho, que me impressionou muito, mesmo no meio de muita gente e de muita agitação.
O meu texto pretende fazer uma breve viagem ao tempo onde raramente havia sol, aonde quase tudo era condicionado, a uma economia pouco desenvolvida, orientada para o exterior, muito dependente, fornecedora de produtos e homens para alimentar a guerra colonial, com muita pobreza, homens e mulheres descalças, com uma elevada mortalidade infantil, muitos analfabetos e muita emigração.
Estou aqui hoje com este testemunho, não porque fosse próximo do Dr. António Borges Coutinho, mas por reconhecimento a um homem que faz parte da nossa história como um lutador antifascista, porque comungo com ele as suas preocupações pela justiça social, a vontade de mitigar este flagelo secular que é a pobreza nos Açores, que nos persegue secularmente, principalmente na ilha de São Miguel e, ainda, porque partilhava com ele a mesma avaliação de uma personagem que na altura passou pelos Açores e que se chamava Altino de Magalhães.
1. O Dr. António Borges Coutinho, foi governador civil do então distrito autónomo de Ponta Delgada e que abrangia as ilhas de São Miguel e Santa Maria, tendo tomado posse para o desempenho deste cargo no dia 21 de agosto de 1974, e que desempenhou até ao dia 6 de junho de 1975. Concretizou estas funções de Governador Civil num contexto económico de uma economia fortemente rural, com uma elevada concentração da propriedade fundiária, principalmente na ilha de São Miguel, com grandes proprietários da terra, sendo que alguns desenvolviam diretamente atividade agrícola e pecuária, outros não as exploravam e cediam-nas a rendeiros, sendo que alguns destes proprietários não residiam nos Açores, limitavam-se a cobrar as rendas e, ainda, uma nova classe de proprietários fundiários que tinham surgido, fruto da compra de terras a emigrantes, a herdeiros de antigos grandes proprietários ou como resultado de processos de reestruturação com origem nas instituições bancárias. Esta economia agrária encontrava-se numa fase de consolidação de um modelo de produção assente numa especialização na produção pecuária e virada para a fileira do leite, graças ao elevado fundo de fertilidade dos solos agrícolas nos Açores e às condições edafoclimáticas do Arquipélago, resultado de uma estratégia bem pensada e explicitada nos III e IV Planos de Fomento. Para compreender esta mudança da economia agrícola da produção do grão e dos produtos agroindustriais para o leite, podemos nos socorrer da instalação da multinacional Nestlé na Lagoa, num regime político que era adverso à abertura económica e muito menos à sua internacionalização. Esta estratégia teve como objetivo fornecer aos contingentes militares a combaterem nas ex-colónias o leite em pó e a um custo reduzido, já que a matéria-prima era paga a um preço reduzido quando comparado com o pago no Continente e na europa, designadamente na Suíça. Com a produção do leite desenvolveram-se outros negócios, incluindo o dos vitelos e exclusivamente virados ou dependentes do exterior. Esta economia de base agrária pouco mecanizada, fortemente caracterizada pelo trabalho intensivo e mal remunerada, coincide com um período de fortes tensões inflacionistas com subidas de preços provocadas pelo chamado primeiro choque petrolífero em 1973; e por uma restrição na oferta de matérias primas, fatores de produção e alfaias agrícolas, como resultado de uma certa desorganização na produção associada ao chamado “processo revolucionário em curso”; e num País que tinha passado por décadas de preços sem inflação, resultado da autarcia do País, e de um poder político centralizador, colonial e pouco desenvolvido. Esta base económica açoriana mal remunerada e com um valor acrescentado líquido baixo, gerou um PIB per capita que em 1974 estimava-se que seria cerca de 48% do da média nacional, isto é, nem chegava aos 50%. Está-se mesmo a ver que neste contexto económico a saída mais lógica para a maioria da população açoriana, foi a emigração.
2. Entre 1950-1974 saíram legalmente dos Açores para a emigração 112.500 pessoas, atingindo em vários anos os 2 dígitos, sendo o concelho de Ponta Delgada, o que mais emigrantes legais teve no País, estes 112.500 residentes que saíram dos Açores representam quase 50% da população total a residir presentemente nos Açores de acordo com os Censos de 2021. Ainda hoje estamos a sofrer as consequências desta debandada significativa de açorianos que foram à procura de melhores condições de vida, de educação para os filhos e de liberdade. Outro indicador social deste tempo é o da taxa de mortalidade infantil, que por exemplo em 1960, indica-nos que por cada 1.000 crianças nascidas vivas nos Açores 78 faleciam com menos de 1 ano, atualmente é de 2,4 falecimentos por 1.000 nascimentos, uma melhoria de 32,5 vezes. Paralelamente, o analfabetismo era muito elevado, superando os 40% de analfabetos nos anos 60 e nos inícios dos anos 70 esta taxa ainda era superior aos 20%, mesmo com as campanhas encetadas então no Marcelismo para reduzir estes valores impressionantes. Em 1950 existiam nos Açores 98.209 analfabetos. Não tínhamos nos Açores uma Universidade e só uma minoria de açorianos iam estudar para as Universidades portuguesas, os Liceus e as Escolas Industriais e Comerciais eram muito poucos e concentrados nas capitais dos ex-Distritos, enquanto que a produção da cultura e o acesso à cultura era muito limitado e controlada, a edição de livros era rara, a censura era uma Instituição, as conferências e encontros de reflexão além de serem poucos, só eram tolerados desde que não pusessem em causa a ordem estabelecida, e até houve quem fosse preso só por a ter questionado. Se hoje nos queixamos nos Açores e bem por termos um Índice de Pobreza na ordem dos 25%, nos anos 60 e inícios de 70 esta taxa deveria ser da ordem dos 60% ou mais, e digo seria, porque neste período não dispomos de informação para este indicador com a metodologia do que temos hoje, e as características do emprego eram também bem diferentes.
3. Em síntese, era este o ambiente económico e social vivido pelo Governador Civil Dr. António Borges Coutinho, propicio à reação em relação às mudanças que o fim do antigo regime (anterior) prometia, temente pelas notícias que chegavam de Lisboa em relação à Reforma Agrária e a uma prometida nova Lei do Arrendamento Rural; confrontados com os aumentos dos preços dos adubos, equipamentos e alfaias agrícolas, um ambiente político favorável à contestação, alguma com razão, mas outra amplificada e trabalhada por adeptos e serventuários do antigo regime, incluindo alguns elementos das ex-colónias que culpavam o novo regime do 25 de abril “de todos os males que lhes tinha acontecido”, a par da geoestratégia e política internacional, que também teve réplicas nos Açores, e o papel dúbio (no mínimo) do General Altino de Magalhães, criaram as condições objetivas para o 6 de junho.
Naturalmente, que o desempenho e posicionamento do Governador Civil o Dr. António Borges Coutinho não está isento de discussão e até mesmo de critica, mas uma coisa é certa, ele foi indiscutivelmente, a que acrescento sua mulher, antifascistas coerentes, e o seu “sacrifício” no 6 de junho não foi em vão, pois contribuiu decisivamente por exemplo para a Autonomia Constitucional Democrática dos Açores que temos hoje, para a criação da Universidade dos Açores, e para a Liberdade, que só foram possíveis graças ao 25 de Abril de 1974 e a todos os que lutaram para que a Revolução triunfasse.