As férias grandes da minha infância e princípio da adolescência foram passadas numa freguesia rural, um espaço de liberdade e conhecimento impossíveis no meio citadino, por óbvias razões de segurança, o que quer que isso fosse em Ponta Delgada à entrada nos anos de 1970.
A essas vivências inesquecíveis devo muito do que sei e entendo na nossa cultura mais genuína, dos cantares e balhos à gastronomia, das crenças à religiosidade popular.
Na distância do tempo, sempre me senti mais completo do que muitos vizinhos e amigos da cidade, que nunca jogaram às escondidas num cerrado de milho, não mergulharam num monte de pragana, jamais conduziram um carro de cana-verde, se aventuraram a colher maçãs, à revelia do proprietário da quinta, ou saltaram fogueiras improvisadas, em cujo braseiro se assavam favas e maçarocas de milho.
É desse tempo que guardo memórias do José Trator. O apelido ganhara-o da sua obsessão por conduzir um daqueles enormes veículos que penetravam por terras adentro, em regime de aluguer, então para transportar trigo e troços de milho e sulcar terreno, inutilizando os velhos arados. José tinha um défice cognitivo, percetível sem recurso a diagnóstico de especialista, mas respeitava todos e por todos era acarinhado. Fazia diariamente quilómetros por caminhos e terrenos de toda a sorte, simulando a condução de um trator, ficticiamente transportando as “novidades” agrícolas. José Trator fazia de conta, e bem.
A política de hoje também é pródiga em gente assim, que faz de conta com a habilidade de um ator e a inconsequência do José Trator.