A escritora Natália Correia “era um ser tocado pelo sagrado, um desses seres que não cabem no espaço que lhes foi destinado, nem no corpo, nem nas normas”, escreveu Fernando Dacosta, escritor, amigo da autora nascida há 100 anos.

As afirmações provêm de “Natália Correia, dez anos depois”, volume organizado em 2003, uma década após a morte da escritora do “verbo insubmisso”, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), reunindo depoimentos de diferentes autores e académicos.

Para a escritora e jornalista Maria Teresa Horta, Natália Correia “era uma força da natureza, formada no desassombro, na desmesura”. Entrava “nos ‘templos’ de chicote em punho, de palavra viva, zurzindo vendilhões, traficantes, hipócritas”, lembrou Dacosta, nesse volume da FLUP.

Poeta, como se definia, dramaturga, romancista, ensaísta, tradutora, jornalista, guionista, editora, deputada, Natália Correia nasceu em 13 de setembro de 1923, na Ilha de São Miguel, nos Açores.

Aos 11 anos, após a partida do pai para o Brasil, fixou-se em Lisboa, com a mãe. “Não havia homem na casa a regular os ponteiros da nossa vida”, escreveu no diário “Não Percas a Rosa”, dirigindo-se à figura materna.

Estreou-se na literatura aos 22 anos (1946), com um romance juvenil, “Grandes Aventuras de um Pequeno Herói”, na mesma altura em que chegou ao antigo Rádio Clube Português, primeiro como declamadora, depois para entrar pela informação. Cerca de três décadas mais tarde, viria a dirigir as revistas Século-Hoje (1975-1976) e Vida Mundial (1976). Mas foi na poesia que se afirmou, com títulos como “Mátria” (1967).

Durante a ditadura do Estado Novo, fez parte do Movimento de Unidade Democrática (1945), apoiou as candidaturas da oposição de Norton de Matos (1949) e de Humberto Delgado (1958), aderiu à Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (1969).

A “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, de 1966, das edições Afrodite, valeu-lhe três anos de prisão com pena suspensa, por “ofensa aos costumes”. Em 1972, regressou ao banco dos réus, pela publicação das “Novas Cartas Portuguesas”, de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, que ousou publicar, na Editorial Estúdios Cor, de que foi diretora literária, sabendo inevitável a proibição da censura.

Não lhe era perdoado o desafio, nem a sensualidade da obra. “Acusam-me de promíscua. O problema é que eu quase não tenho libido. O sexo nunca representou grande coisa para mim”, escreveu no seu diário.

No início dos anos 1970, quando fundou o bar Botequim – “a última grande tertúlia de Lisboa”, como disse Dacosta –, assumiu a coordenação da Editora Arcádia, na qual entraram autores como Italo Calvino e Artur Portela Filho, com os primeiros volumes de “A Funda”, com que abalou a ditadura.

Em “Não Percas a Rosa”, diário escrito de 25 de Abril de 1974 a 20 de dezembro de 1975, combina testemunho e premonição. Esta lá tudo, disse Dacosta no livro de memórias “O Botequim da Liberdade”, que lhe dedicou: “O fim do 25 de Abril, a queda do Bloco de Leste, a ditadura mercantilista, a perversão globalizadora”.

“Natália dava largas ao seu invulgar talento oratório, a que não era estranha a coragem combativa que a moveu na política, nas suas polémicas intervenções parlamentares, enquanto deputada, e nas tertúlias artísticas”, lê-se na página que lhe dedica a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).

Entrou no Parlamento, em 1980, com o PPD/PSD de Francisco Sá Carneiro, e em 1985, com o PRD de Ramalho Eanes, sem pôr em causa a independência com que de lá saiu em 1991. A defesa dos mais frágeis sustentou as suas intervenções, algumas com humor, como o poema com que ironizou o puritanismo do deputado do CDS João Morgado, no debate sobre a despenalização do aborto, em 1982.

“Já que o coito – diz Morgado – tem como fim cristalino, preciso e imaculado, fazer menina ou menino, e cada vez que o varão sexual petisco manduca, temos na procriação prova de que houve truca-truca”, declamou Natália, em plenário, sem poupar a conclusão: “Sendo pai só de um rebento, lógica é a conclusão de que o viril instrumento só usou – parca ração! […]. E se a função faz o órgão – diz o ditado – […] ficou capado o Morgado.”

“Entrei na política por causa da cultura, [porque entendo que] a cultura é condicionante da política, e a política não pode ser condicionante da cultura”, disse em 1980.

Como editora, Natália Correia publicou Henry Miller, Graham Greene, Henri Michaux, Eugene Ionesco, autores com quem também privou. Muitos deles entraram na casa onde viveu com o empresário Alfredo Machado Lage, o seu terceiro marido, “o homem que verdadeiramente amou”, e com o qual esteve casada durante quase 40 anos, até à viuvez, em 1989, como recordou Dacosta em “O Botequim da Liberdade”.

Esteve no Movimento da Filosofia Portuguesa com o ensaísta e pedagogo António Sérgio. Com José Saramago, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares Rodrigues criou a Frente Nacional para a Defesa da Cultura, em 1992, em oposição ao acordo ortográfico, o derradeiro combate.

Não se importava com as derrotas: “Só os medíocres sabem o que fazer com a vitória”, escreveu.

Nos anos de 1980, Natália retomou “Mátria”, ideia que seduz “espíritos insatisfeitos com as perversões morais e políticas de Pátria”, escreveu o professor Adriano Carlos, no volume que a FLUP lhe dedicou. “Mátria seria a ‘língua Natália’”, identificação da mulher como matriz da liberdade, a voz da fraternidade que alargou a “Fátria”.

Era a poeta do “verbo insubmisso”, que via “a poesia como profecia”, que admirava Teixeira de Pascoaes e Antero de Quental, e o seu apelo aos humilhados: “Não disputeis, curvado o corpo, as migalhas do banquete. Erguei-vos e tomai lugar à mesa!”

Transpôs para o português contemporâneo o Cancioneiro Medieval, organizou uma “Antologia da Poesia do Período Barroco”.

“Natália Correia foi um desses seres que se adiantam ao tempo em que vivem […]. Reencontrou os grandes mitos portugueses, que nos seus trabalhos se transformaram em arquétipos recorrentes: Andrógino (o ser completo, uno e plural), o Desejado (que simboliza a resistência, a esperança em tempos melhores), a história de Pedro e Inês (símbolos da paixão, da volúpia na morte), o espaço sagrado e iniciático da Ilha, com os seus enigmas por resolver”, lê-se na página da DGLAB.

“Dedicou obras próprias a cada um desses mitos e símbolos, conferindo-lhes uma dimensão de futuro, de liberdade, de portugalidade”, prossegue a DGLAB, que contrapõe a permanência da escritora nos Estados Unidos, em 1949, durante o seu segundo casamento, com o norte-americano William Creighton Hyler – um casamento do qual saiu “num relâmpago”, à semelhança da primeira união, aos 19 anos – para citar o livro de crónicas “Descobri que era Europeia”, saído desse período.

A obra literária de Natália Correia soma perto de meia centena de títulos. É dominada pela poesia que, no seu último ano de vida, reuniu em “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias”.

Foi continuamente processada, condenada nos tribunais plenários da ditadura e sistematicamente proibida pela censura, até Abril de 1974.

Escreveu “Poemas a Rebate”, os romances “A Madona”, “As Núpcias”, “A Ilha de Circe”, os ensaios de “Uma Estátua para Herodes” e “Somos Todos Hispanos”, o teatro de “O Homúnculo”, em que expõe o ridículo de Oliveira Salazar, e “O Encoberto”, em que se opõe ao “opressivo silêncio do mundo”.

Recebeu o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, em 1991, por “Sonetos Românticos”. No mesmo ano foi-lhe atribuída a Ordem da Liberdade, que juntou à Ordem de Sant’Iago da Espada.

“Os meus heróis na vida real são os que desafiam a lei em nome de um ideal”, disse numa entrevista, em 1962, quando a crise académica desafiava a ditadura nas ruas de Lisboa.

Natália Correia morreu na madrugada de 16 de março de 1993, há 30 anos. Sobreviveu-lhe o quarto marido, o cineasta e escritor Dórdio Guimarães (1938-1997), que lhe dedicava uma devoção de décadas.

Aos Açores Natália deixou tudo: a biblioteca, a coleção de arte, os volumes editados e inéditos da obra, documentos biográficos, iconografia e correspondência. Deixou também as suas próprias cinzas, sepultadas no jardim interior da Biblioteca Pública de Ponta Delgada, desde 2016, depois de 23 anos no Panteão dos Escritores do Cemitério dos Prazeres, em Lisboa.

“Era surpreendente vê-la dirigir-se às prostitutas e aos travestis que acorriam a saudá-la quando, madrugada alta, chegava à sua rua […], num fantástico teatro de sombras e iluminações”, escreveu Fernando Dacosta no termo de “O Botequim da Liberdade”.

Após a morte, foram eles, os marginalizados, os mais esquecidos e humilhados, que a homenagearam numa guarda de silêncio, na vigília na Casa dos Açores.

“Senhores banqueiros, sois a cidade / o vosso enfarte serei”, “sou a imprudência, a mesa posta de um verso onde o possa escrever”, disse em “A defesa do poeta”, onde clama: “Ó subalimentados do sonho! A poesia é para comer.”

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