Terminado o mês de agosto, não podemos deixar de suspirar pelo verão que se vai esvaindo entre os dedos das nossas mãos. Foi, como sempre, um mês de fenómenos estranhos e dispersos.
Um dos mais recentes e bastante apregoado foi o da dita “lua azul”, que ao que parece é o nome atribuído a uma lua cheia que ocorre pela segunda vez dentro do mesmo mês. É um fenómeno que é sinónimo de repetição de algo que arregala os olhos, portanto.
O que nos deixa de olhos bem mais arrepiados do que arregalados são os números crescentes das estatísticas referentes aos abusos e à violência contra o sexo feminino. Com o extremar das ideologias a que assistimos, uma das que mais beneficia desse processo é a do machismo e da hegemonia patriarcal, que quase sempre tudo controlou e que agora quer ainda mais controlar.
O patriarcado incentiva dominar as mulheres da sua vida e mantê-las debaixo de olho. E às mulheres que seguem esses homens compete denegrir as suas próprias irmãs de luta, para que possam agradar a sociedade.
Não posso deixar de mencionar, desde já, o horrendo episódio italiano que partiu do companheiro da atual primeira-ministra (que, já agora, é líder do partido de extrema-direita), onde ele veio assumir que uma mulher que é violada só o é porque foi dançar e beber. É esse o trabalho de sempre do machismo dominante. O de negar as felicidades básicas da vida à mulher. Sempre assim o foi, mas não precisa de assim o ser no futuro.
Até lá, os números não mentem. Em anos recentes, são centenas de casos de denúncias de violência sexual, abuso doméstico e demasiadas mortes para aqui relatar, ponto a ponto, sem verter lágrimas silenciosas.
Ainda assim, importa gritar que quando morre uma mulher, logo toda a sociedade se une num processo quase religioso, onde se chora a perda da vida, mas nada se faz para impedir que no futuro outras morram pelo mesmo gatilho. É um processo repetitivo. E muito aflitivo. Até porque será difícil encontrar uma mulher no mundo que não tenha já sido alvo de um abuso. Muitas não o reconhecem porque a sociedade assim o determinou.
Tenha sido ele algo tão simples quanto um comentário inusitado ou controlador, ou algo tão grave quanto um episódio de pancadaria. Ou pior: a violação da sua autonomia pessoal, em qualquer sentido que seja. Isto tudo, portanto, para falarmos de Jenni Hermoso, como muitas das pessoas que me leem já devem ter calculado. Não perderei tempo a escrever o nome do seu mais recente agressor, nem escolherei derramar tinta acerca dos renovados abusos que ele anda a promover, chegando mesmo a levar a própria mãe a cometer um ato descabido, de greve de fome, para fazer dele a vítima.
Jenni Hermoso, para quem não acompanhou o caso, é uma das estrelas da seleção espanhola que recentemente se sagrou campeã mundial. Durante a cerimónia de celebração, o atual presidente suspenso da Federação Espanhola de Futebol decidiu aproveitar-se da jogadora e espetar-lhe um beijo na boca. De maneira alguma poderá ter havido consentimento no que se passou, mesmo que houvesse uma hipotética proximidade entre os dois, de acordo com os primeiros comunicados avançados pelo gabinete do abusador suspenso.
Quando se percebeu a gravidade do que cometera, em frente às câmaras e ao mundo, retratou-se e pediu desculpa, assumindo que tinha cometido um ato infeliz.
Infelizes são as mulheres que convivem com atos desses diariamente. E Hermoso convive agora com os holofotes do mundo, sendo acusada de tudo e mais alguma coisa, somente por ter sido alvo de uma ação de violência. A culpa é da vítima, querem apregoar. Porque é assim que o machismo contemporâneo se comporta, passando a narrativa para os comentários das redes sociais, onde tudo é motivo para passar o delito para o lado da mulher. Já conhecemos bem a conversa: “Pôs-se a jeito”; “Não devia andar assim vestida”; “Ela é que o abraçou”; “Já viram aquelas conversas?”; “Isto não é sítio para mulheres.”
Havia muitas mais para escrever, mas, voltando ao caso de Jenni, a conversa que mais se ouviu por aí foi a de que o tal abusador terá feito o que fez num acesso de alegria. Conhecemos as mais diversas manifestações de alegria, mas somente uma mente, habituada à impunidade, poderia racionalizar o ato de beijar uma pessoa sem autorização como sendo um bonito gesto de quem está verdadeiramente contente com a situação. Uma mulher nunca poderia almejar tal coisa.
Até porque para uma mulher, o objetivo é quase sempre sobreviver, porque dominar é um papel que lhe foi negado desde a nascença. Correr atrás desse direito é o trabalho de todas nós (e de todos os que a nós se queiram juntar), ainda que apenas algumas o tenham aceite.
O trabalho do machismo é o da repetição que quase parece eterna. Azul, portanto. Como a lua. Arregalamos os olhos e levantamos punhos para continuar a combater. Sejam agressões como a que aconteceu com Jenni; sejam barbaridades vindas dos descendentes ideológicos de Mussolini; sejam comentários brejeiros de rede social; seja a violência doméstica; seja o que for. Continuaremos a dizer que não passarão, até deixarem mesmo de passar.