Conta a minha mãe que aprendi a ler cedo. Há mais de 40 anos, numa altura em que os perigos não espreitavam, na ilha das Flores, nas horas da sesta, a mãe aproveitava para ir às compras deixando-me, junto à cama, um bilhete: “A mãe foi à loja”.
Era esta frase que me transmitia calma e serenidade até o seu regresso e que me permitiu juntar as primeiras letras, de forma a perceber que se tinha ausentado para um local que eu conhecia (loja) e que voltaria dentro de pouco tempo.
Na verdade, tive a sorte de viver no seio de uma família que tinha o hábito da leitura. Os meus pais, os meus primos, os meus tios e, mais tarde, a minha amiga de infância – Zaida-, devoravam livros, que nos permitia conhecer, e viver histórias, para além da ilha que nos encerrava em invernos longos e difíceis, sem luz e, muitas vezes, sem sinal na televisão.
Vem isto a propósito do mais recente livro de Joel Neto – Jénifer, ou a princesa de França. As ilhas (realmente) desconhecidas -, que tanta celeuma levantou.
Adquiri-o diretamente através da Fundação Francisco Manuel dos Santos aquando da sua publicação. Li-o duas vezes, em tempos espaçados.
A primeira vez que o li, não consegui interromper a leitura, tal foi a inquietação que me envolveu. Constando a controvérsia que o livro originou, li-o uma segunda vez na tentativa de perceber se algo me teria escapado. E, não. Não me tinha escapado nada.
O autor transformou números e valores percentuais (muito importantes para as sua devida análise e definição de políticas) referentes à nossa região, em letras, numa narrativa que permite sairmos das tabelas para as suas consequências.
Ver tabelas com percentagens relativas à pobreza, ao abandono precoce escolar, à gravidez precoce, a comportamentos aditivos, nunca é o mesmo que assistir às suas consequências reais na vida das pessoas. E, talvez, seja mesmo por isso que o livro levantou tanta polémica. Para quem não quer, independentemente da razão, interpretar tabelas, tem a oportunidade de constatar o que se vive a portas meias com a urbe, totalmente adaptada à nova monocultura (turismo), que mantém os pobres e os vulneráveis no seu lugar. No exato mesmo lugar de sempre: habitações que dão teto até 3 gerações de pessoas pobres, marginalizadas pela sociedade.
Querem permanecer assim? Basta ler a Jénifer (ou a Princesa da França) para perceber que não. Os sonhos também proliferam naquelas crianças e adolescentes, aquelas que assistem à violência física e verbal dos seus pais, que curam as suas feridas com água e sabão, que vão trabalhar para ajudar a mãe, que engravidam cedo e desconhecem o significado de consulta de planeamento familiar e, que mais tarde, percebem que os seus sonhos foram castrados quando se veem, na idade adulta, a reproduzir a infância sofrida.
Não é de agora a pobreza. Ainda me recordo das bolsas de pobreza de Mota Amaral. Nem digo que nada foi feito para a travar.
No entanto, acabar com a pobreza não deve ser um mero desiderato retórico. E o paradoxo disto tudo, é sermos uma região marcada pela pobreza e pelas desigualdades sociais e aplicar políticas que promovem a exclusão das pessoas mais vulneráveis.
Como se muda isto? Libertando-nos de amarras, colocando a região acima de interesses diplomáticos, deixando de ser meras plataformas que permitem que todos os resultados científicos não nos pertençam, colocando as nossas infraestruturas ao uso da transformação socio económica, criando postos de trabalho bem pagos, redistribuindo a riqueza que só tem espaço na conta de meia dúzia de pessoas, e, acima de tudo, acreditando na potencialidade dos nossos jovens, permitindo a sua capacitação para que perspetivem um futuro, no qual possam voltar à região.
Não podemos falar em meritocracia quando temos uma taxa de desigualdades sociais tão elevada, pois as oportunidades não são iguais! Variáveis como habitação, saúde e hábitos influenciam fortemente o percurso académico…basta relembrar a Jénifer, ou a princesa de França, que não teve culpa do seu ambiente familiar.