Reconhecer e mostrar-se como pobre e miserável era, em outros tempos, considerada uma virtude. Antes de receber a ração diária, os indigentes deviam passar pela vergonha da mendicidade, em frente às obras de caridade, esperando sob o olhar de desprezo de quem passava.
Quero crer que, atualmente, não haja quem defenda esta “pedagogia da vergonha” que tão bem Benjamin Sèze descreveu em Quand bien manger devient un luxe. En finir avec la précarité alimentaire, que teve o seu momento de glória no século XIX.
Os serviços sociais e as organizações caritativas pretendem hoje permitir a autonomia e a dignidade aos desfavorecidos, graças a apoios, a mercearias solidárias e à distribuição de cabazes mensais.
Estamos numa região pobre, um problema estrutural que se entranhou de tal forma que a nossa autonomia não conseguiu derrubar e que chega até à 3.ª geração.
Não tendo Portugal, ainda, ultrapassado os resultados desastrosos da passagem da Troika e das suas medidas austeritárias, onde a coligação PSD e CDS, que comandava o rumo do país foi mais além com as suas políticas, colocando a forca no pescoço de todas e todos nós, eis que vivemos a fase pandémica, que praticamente parou o mundo, a invasão da Ucrânia pela Rússia procedida pela inflação que atirou milhões de pessoas para a miséria e outras tantas para a pobreza.
Cada crise traz o seu lote de “candidatos” à pobreza, sem descer ao nível anterior uma vez a tempestade passada. Surpreendemo-nos, ou não, com a descoberta de um “novo público” de “beneficiários” — estudantes precários, trabalhadores com contratos precários, famílias monoparentais ou pensionistas, que se juntam aos já “beneficiários” habituais. São os antigos e os novos pobres, onde, segundo a historiadora Axelle Brodiez-Dolino, se recupera «uma cantilena recorrente ao longo dos séculos que só conduz a estigmatizar uns para se condoerem provisoriamente com outros; a opor, com consequências políticas negativas, indivíduos muitas vezes próximos em termos sociológicos, que ora estão acima ora estão abaixo do limiar da pobreza».
Não bastando a precariedade em que vivem milhares de açorianas e açorianos, seja nos seus contratos de trabalho ou nos baixos salários praticados, neste momento, com a subida brutal dos juros ao crédito à habitação, bem como do preço relativos aos bens alimentares, em que se perdeu o poder de compra, as pessoas ponderam pagar o seu teto ou a sua alimentação.
O receio da estigmatização da pobreza, devido ao crescente discurso de ódio relativo aos mais desfavorecidos da nossa região, imposto pela entrada da extrema-direita no palco das decisões legislativas e acompanhado por alguns dos nossos decisores políticos, leva-me a pensar que devem ser muitas as famílias que se retraem na procura de ajuda. A vergonha de recorrer ao apoio alimentar, a tal ponto que muitos preferem renunciar a recebê-lo. Vergonha de ser apoiado, de não poder alimentar a família, do que os outros vão dizer.
Em 2022, o Bloco fez aprovar uma proposta que pretendia atenuar o impacto do aumento da inflação na região, que incluía um ponto resolutivo para a utilização do regime jurídico de preços para que, quando estritamente necessário, fossem estabelecidas margens máximas de comercialização de bens alimentares, de primeira necessidade e fatores de produção com vista a conter a escalada de aumento do custo de vida.
No entanto, o que se seguiu foi um drástico aumento do preço a pagar nas caixas do supermercado, comprovando que se o Governo Regional tivesse, realmente, uma preocupação genuína com as dificuldades que as pessoas estão a sentir, já teria atuado garantindo o controlo de preços nos bens essenciais.
O Governo, com receio dos grandes grupos, optou pela monitorização cujos relatórios provam a subida de preços no cabaz, que contempla 15 produtos escolhidos pelo Governo.
Esta monitorização, para além de ser um mecanismo insuficiente, deixa de fora um conjunto de produtos essenciais para uma refeição nutricionalmente equilibrada, nomeadamente pela exclusão de produtos hortícolas, frutícolas, peixe e leguminosas, por exemplo.
Por sua vez, a medida do IVA 0, em vigor, como já se percebeu, terá um efeito residual ou nulo, pois a poupança num cabaz de 25 produtos ronda os 2,83€, ao passo que a inflação nos produtos alimentares entre fevereiro e março aumentou mais de 8%.
No plenário de abril, apresentamos uma proposta que pretendia atuar quando a inflação dos alimentos fosse superior a 4% nos 12 meses anteriores, em que o Governo Regional definiria um cabaz com preços controlados, o que permitiria combater o aumento galopante de preços e que asseguraria que todas as famílias pudessem comprar produtos essenciais para uma alimentação equilibrada a preços acessíveis.
No entanto, e com as desculpas, já gastas, do mercado se autorregular (coisa que nas caixas dos supermercados não se verifica), a iniciativa foi rejeitada pelo PS, PSD, CDS, PPM, IL e pelo Deputado Independente.
Enquanto ouvimos e lemos os lamentos pelos dados que mostram que os Açores são a região mais desigual do país e a segunda com maior taxa de risco de pobreza, a comida continua a ser um luxo para tantas e tantas pessoas.