Alexandra Manes

Na França do século passado, por volta da década de 50, as populações residentes foram confrontadas com uma nova realidade demográfica, que lhes obrigou a desenvolver estratégias de integração social. Eram tempos de migrações, onde o país recebia fluxos populacionais consideráveis, vindos de várias partes do mundo, e de onde se destacavam duas vagas: os italianos e os argelinos. À época, desenvolveu-se um discurso claro, no sentido de favorecer os provenientes do país vizinho, e desvalorizar a cultura argelina, que mesmo sendo igualmente mediterrânica, era entendida como incapaz de se integrar na sociedade parisiense, alegadamente mais desenvolvida. O italiano era bom. O argelino era mau.

Nos anos que seguiram, Itália deu lugar a Portugal. Durante a década de 60, abriu-se um longo corredor entre Lisboa e Paris, que permitiu a entrada, muitas vezes ilegal, de milhares e milhares de portuguesas e portugueses, fugindo de opressões e recrutamentos compulsórios, em busca de uma oportunidade para viver livremente. Aos olhos dos que agora querem reescrever a história, a imigração portuguesa foi feita de forma resiliente, no jugo de um dos maiores bairros de lata, o famoso Bidonville. Conquistaram-se posições importantes na sociedade francesa e ascendeu-se a altos cargos e distinções, fazendo do português o bom. O argelino, permanecia o mau.

A verdade tende a ser mais cruel. Ao abordarmos os parcos estudos que existem sobre o assunto, bem como recorrendo ao mais básico senso comum, não será difícil de compreender que quem ia de Portugal para França vivia debaixo do medo da deportação, com condições deploráveis, que levaram a serem considerados como pessoas de terceiro escalão. Somente com o apoio do Estado francês de então foi possível aos portugueses assumirem-se como uma força de peso na imigração. Apoio que nunca foi verdadeiramente concedido aos argelinos.

No Canadá, no Brasil e nos Estados Unidos, onde açorianas e açorianos trilharam caminhos semelhantes, a situação não decorreu de forma muito diferente. A política de acolhimento foi sempre mais favorável a determinados tons de pele e estilos de vida, criando-se uma falsa narrativa assente na proximidade moral e religiosa, quando, na verdade, uma pessoa vinda de Portugal, muito pouco teria em comum com o modo de vida de uma que fosse natural de Toronto, em 1972.

O mundo não mudou assim tanto. Hoje, prolifera a narrativa de que as populações provenientes de África e da Ásia não desejam integrar-se nas comunidades para onde vão habitar, seja em Lisboa, Berlim ou Paris. Por oposição, um americano terá direito a passadeira vermelha e negócio imobiliário com impostos favoráveis.

A única diferença é a forma como o Estado português aceita acolher e desenvolver as suas políticas sociais. Ao invés de se tentar dialogar, alimenta-se a narrativa da suspeita e da desconfiança, procurando transformar a mais empática pessoa numa fonte de dúvidas morais.

Esse é o discurso de Ventura e dos que dos Açores foram ter com ele para no dia 29 de setembro participarem numa manifestação que deixou o Rossio meio vazio, mas foi suficiente para revelar o verdadeiro lado obscuro da sociedade que pretendem criar.

Naquele dia, lado a lado com os assumidos neonazis do grupo 1143, membros daquele partido empunharam megafones e gritaram em plenos pulmões palavras de incentivo contra a imigração, humilhando seres humanos e promovendo a violência. O próprio líder falava de bandeira enfiada na cintura, como se fosse uma arma de arremesso, desafiando o conceito de fazer o bem, e recorrendo a todos os truques mais básicos que aprendera nos seus dias de comentador de futebol.

Em tempos, discutiu-se a constitucionalidade daquele grupo político que nunca devíamos ter aceite como sendo um partido, mas antes como uma ferramenta para ver partido o nosso sistema democrático. Fazem parte dele pessoas que foram para França, e para outros países, mas esqueceram a sua vocação global para agora fecharem as suas portas a quem mais precisa. Cristãos, crentes na mais boa vontade do homem, ombro a ombro com cabeças rapadas e braços tatuados com cruzes de ferro e outros velados símbolos do mais pernicioso totalitarismo. No meio de tudo aquilo, prenderam-se pelo menos duas pessoas, enquanto gritavam “25 de abril sempre”, e outras palavras de liberdade. Não se consegue compreender.

No dia 29 de setembro, Lisboa recordou-nos o que está em jogo. Dos Açores, partiu uma comitiva de cidadãos que só querem o seu bem, para marchar ao lado de Ventura, de Mário Machado e das centenas de pessoas que ali estiveram. Algumas por saberem o mal que estavam a promover. Outras por terem ido ao engano da banha de uma venenosa cobra, que Umberto Eco chamaria de fascismo.

Pelos imigrantes portugueses de Bidonville, pelos argelinos que nunca foram verdadeiramente aceites, por cada açoriana e cada açoriano que um dia pisaram o continente americano, e por todas as pessoas que lutam pela sua vida para alcançar a Europa, desejando um mundo melhor, é preciso que se reconheça a vergonha do que se passou no Rossio. É preciso exigir que um partido que marcha ao lado da suástica seja entendido pelo que é. Cabe a cada cidadã e a cada cidadão, que ainda guarde empatia no seu coração, dizer que nunca mais. Mesmo que para isso tenha que arriscar a sua prisão.

PUB