Corria o ano da Liberdade, quando Sérgio Godinho editou o seu álbum “À Queima Roupa”, um manifesto social de um dos grandes nomes da música de intervenção portuguesa, onde o cantor e autor se debruçou sobre alguns dos grandes temas do país, que renascia dos sombrios tempos do Estado Novo. Volvidos quase cinquenta anos, a música de Sérgio Godinho permanece atual. De entre os muitos ensaios que aquele artista ofereceu à nossa sociedade, há um que hoje gostaria de destacar e recordar, como exemplo do tanto que se fez e do muito que ainda falta fazer até chegar.

E a música chama-se, precisamente, “Liberdade”. A paz, o pão, a habitação. saúde e educação. É assim que Sérgio Godinho declama sobre alguns dos principais e mais fraturantes temas da nossa contemporaneidade. E será por aí que hoje procederemos a um breve balanço de uma parte do trabalho desenvolvido pelo XIII Governo Regional dos Açores, e respetivos parceiros de acordo parlamentar que ora está rasgado, ora está reposto, conforme der jeito aos partidos que o sustentam.

Comecemos de trás p’ra a frente, pelo início do novo ano letivo, e pelos três anos de trabalho da Secretária Regional da Educação, entretanto obrigada a gerir também os tais assuntos de Cultura. O trabalho do Governo Regional neste setor pode, numa primeira abordagem, aparentar ter um saldo muito positivo. Sabemos dos professores que efetivaram na Região. No entanto, a educação permanece em constante perigo de ruir, equilibrada no fio de uma navalha cada vez mais enferrujada, que agora demonstrou a sua fragilidade com um começo de ano escolar que raiou o desastre. Outro problema que se levanta com este começo de 2023-2024 é o da falta de pessoal auxiliar e de pessoal capacitado, no sentido em que a Secretaria terá assegurado condições para o corpo docente, mas parece ter-se esquecido dos que assistem ao normal funcionamento das suas escolas.

O despedimento encapotado das e dos funcionários, leva a uma gritante falta de assistentes técnicos na Região que se materializa numa gestão caótica do quotidiano que vamos tomando conhecimento pela mão de muitos encarregados de educação descontentes com quem os deveria proteger. Quando se quer a todo o custo assegurar uma dívida a zeros, assume-se que o dinheiro vale mais do que a vida humana.

Sobre a saúde, para além das mil e uma noites atrapalhadas em que o Governo se envolveu, num conflito interno do próprio PSD Açores, que culminou com a saída de Clélio Meneses da Secretaria, há também a necessidade crescente de observar as consequências danosas da corrosão provocada nas infraestruturas da saúde na Região. Mesmo com todo o reforço orçamental inerente a um mundo que vive as sequelas de uma brutal pandemia, os hospitais estão lotados, com infiltrações e administrações infiltradas, para além dos centros de saúde ao abandono e das condições precárias com que se tratam os doentes que precisam de sair da sua zona de conforto para receber tratamento noutro local. A juntar a todo esse salteado de problemáticas, a Iniciativa Liberal e os respetivos colegas de ideologia dentro dos restantes partidos do arco, vão salgando o debate com o reforço do setor privado e a crítica mordaz e demolidora ao Sistema de Saúde Nacional. Enquanto a narrativa permanecer focada numa ilusão de incompetência da estrutura existente, que na verdade é reflexo de má gestão dos responsáveis políticos, a saúde permanecerá uma arma de arremesso, e as pessoas continuarão a passar dificuldades nas suas horas de maior aperto.

E que dizer da habitação, que já não tenha sido dito? A especulação imobiliária galopante é um sintoma de um ordenamento territorial e urbanístico deficitário, onde a procura por um turismo insustentável, defendido a ferro e fogo pelos detentores da sua promoção, tem vindo a revelar-se um desastre para quem quer habitar onde sempre habitou. Bastaria atentar nas recentes manifestações em defesa de um nível de qualidade de vida mínimo que se perdeu com o pulular dos Alojamentos turísticos e dos grandes complexos hoteleiros de betão.

Mas talvez seja importante apontarmos casos concretos, como o recente discurso de José Manuel Bolieiro nas Jornadas Atlânticas de Turismo, onde os números falaram mais alto do que as pessoas. Ou o caso da desregulação absoluta do ambiente, onde se ignoram os profissionais para construir e destruir a belo prazer, até mesmo no ponto mais alto do país.

Não será questão de somenos a galopante ascensão de cidadãos necessitados que acabam a viver em habitações sustentadas, que não são mais do que autênticos guetos, ou até mesmo nas ruas das nossas ilhas, porque os imóveis e as fajãs vendem-se ao preço do ouro para o investimento estrangeiro de teor colonialista. Não deixam nada que não seja igual a qualquer outra capital, como diz a mais recente cantautora dos nossos palcos, Cátia Mazari Oliveira.

Quando Sérgio Godinho falava de pão, imaginemos que ele falaria de fome. Das necessidades que se sentiram no Portugal de Salazar, e da necessidade de inverter esse caminho, que agora parece cada vez mais próximo de regressar. Nos Açores, sentimos uma falta de regulação dos preços e uma total abertura ao mercado especulativo na alimentação, que é também fruto de abandonados setores nas pescas e na agricultura, entregues às mãos de muito poucos. Conforme já foi lembrado pela escrita de quem se preocupou com o assunto, a pobreza não é tema de bailinhos, mas sim uma realidade insular que é varrida para debaixo do tapete por quem só tem olhos para o seu próprio umbigo. Cada vez mais é inevitável encontrar famílias necessitadas em busca de um mísero apoio para a comida do seu agregado.

Quando se procura gerir uma Região como quem gere uma grande empresa, o resultado inevitável passa pela redução dos encargos, seguido da redução das próprias vidas. E se isso pode parecer proveitoso a quem achar que o dinheiro é o mais importante, a verdade é que o que se vê são pessoas desesperadas por conseguir um trabalho adicional que lhes permita comprar aquele pacote de leite que falta à criança lá de casa.

Retirem as conclusões que acharem melhor retirar.

E, por fim, a paz. Ou a ausência dela. Com um Governo Regional sustentado num partido que promove o discurso de ódio, qualquer tentativa de pacificar o trabalho político tornou-se incomportável. Por isso mesmo, assistimos a conflitos que descem o nível e sobem o tom, nas assembleias, nas redes sociais e nas próprias ruas. Quando se valida a existência de pessoas que apelam à luta entre crenças e maneiras de estar, o resultado é o mesmo de sempre, desde que a história nos ensinou: há cada vez mais guerras e cada vez menos paz. O chega Açores tem sido prolífero nessa propaganda de café, mas não é exemplo único. Há representantes partidários em quase todos os quadrantes que parecem apelar à briga como solução para os problemas do arquipélago, do país e do mundo. E há aqueles que, não o fazendo, promovem em paralelo o preconceito social, a xenofobia e as suas variantes. ficamos com poucas certezas.

Há cada vez menos paz. O pão escasseia. A habitação é coisa de ricos. A saúde esmorece e a educação enfraquece as suas bases. Se seguirmos a letra da “Liberdade”, saberemos dizer que falta liberdade a sério neste cantinho do Atlântico.

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