São “muito baratas”, viciantes e abundam nas ruas: em São Miguel, Açores, as novas substâncias psicoativas (NSP), vulgo drogas sintéticas, misturam-se com lixívia ou fertilizante em “laboratórios caseiros”, provocam surtos psicóticos e destroem funções cognitivas.
Em Ponta Delgada, há vendas e consumo, por exemplo, num jardim onde turistas tiram fotografias, adolescentes comem sandes e idosos jogam às cartas depois do almoço – as autoridades sabem, está à vista de todos, mas “consumir não é crime” e “vender sintéticas também não”, justifica a diretora-geral da Arrisca – Associação Regional de Reabilitação e Integração Sociocultural dos Açores, Suzete Frias.
“A cada semana surge uma substância nova. Vender só é crime se estiver incluída nas listas de consumos ilegais. Atualmente, há três na lista. Estamos sempre atrás do dano”, lamenta.
Relativamente ao projeto de lei que deu entrada na Assembleia da República para criminalizar as NSP, Suzete Frias considera que, “com novas substâncias a surgirem semanalmente, o problema de fundo mantém-se”.
Mais de um terço das NSP apreendidas em 2021 em Portugal foram recolhidas nos Açores, onde já foram registadas substâncias “nunca vistas” na Europa, revelou a Polícia Judiciária em 2022.
O número de consumidores de NSP na região não está contabilizado, mas, em março, estavam 937 utentes em programas de substituição opiácea e “muitos deles paralelamente consomem drogas sintéticas”, diz à Lusa a secretária regional da Saúde, Mónica Seidi.
Para alguns, será “muito complicado a parte cognitiva voltar à normalidade”, afirma Sílvia Moreira, psicóloga da Alternativa – Associação contra as Dependências.
“Se estão a ingerir combustível, inseticidas, lixívia ou acetona misturados com medicamentos, o que lhes vai acontecer ao cérebro? É veneno, literalmente”, avisa.
Também Suzete Frias menciona que as substâncias psicoativas “são misturadas nos Açores com fertilizantes, desinfetantes ou remédio de ratos”, produtos “tão nocivos” como a droga, “em laboratórios domésticos mas perigosos, por conterem materiais altamente inflamáveis”.
“O utente açoriano é essencialmente de policonsumos, que compra e consome substâncias baratas sem olhar o grau de risco que comportam”, revelou, numa resposta escrita, a Direção Regional de Prevenção e Combate às Dependências.
Segundo Suzete Frias, a “maior motivação” perante as NSP é o preço.
“Por dois ou três euros, compra-se um pacotinho para várias doses. Por outro lado, há uma maior abundância destas drogas”, indica.
Mas “a grande causa do consumo nos Açores é a pobreza”, sublinha, acrescentando que em São Miguel, a ilha com maior prevalência de consumos, a maioria dos dependentes “tem baixa escolaridade, vulnerabilidade social, e compra na rua”.
Segundo dados de 2022 do Instituto Nacional de Estatística, os Açores eram a região do país com maior taxa de risco de pobreza (28,5%).
Para a responsável da Arrisca, “é preciso o Governo investir na prevenção, no combate à pobreza, promover a economia, os empregos, o acesso à habitação”.
As NSP provocam “mudanças rápidas de comportamento e humor, agressividade, um tom de pele branco amarelado” e “distúrbios mentais e surtos psicóticos”, como “audições e visões e mania da perseguição”, conta a psicóloga Sílvia Moreira.
A maior parte dos consumidores, acrescenta, “sai de casa, ou só lá vai exigir dinheiro ou roubar alguma coisa”.
Um estudo da associação Novo Dia relativo a 2020 identificou 493 sem-abrigo nos Açores e “uma maior proporção de sem-abrigo por mil habitantes (2%)” do que no continente (0,84%).
Além dos que dormem na rua, há os que ali passam o dia, deambulando em caminhadas aparentemente intermináveis, a implorar “cinco cêntimos para comprar uma sandes”, ou parando à porta de supermercados com copos estendidos à espera de moedas.
O número de pessoas encaminhadas para tratamento em comunidades terapêuticas nos Açores passou de 26 em 2019 para 35 em 2022, 63 em 2021 e 25 em 2022, segundo dados da direção regional.
Por outro lado, o alcoolismo é, no arquipélago, “um problema tão grave como as sintéticas”, avisa a psicóloga da Alternativa, alertando que, “no regresso a casa, com tantas feridas abertas”, há uma tendência dos utentes de passar para o álcool, “legal, barato e culturalmente aceite”.