O festival Tremor voltou a realizar-se em S. Miguel, Açores, entre Ponta Delgada, Ribeira Grande e Rabo de Peixe, com propostas musicais, performativas e plásticas tão diversas quanto os locais em que se realizaram.

Com lotação esgotada, o Tremor contou também com as já habituais caminhadas, ou ‘trekkings’, pelas florestas da ilha de S. Miguel, algumas com bandas sonoras debitadas em auscultadores pela aplicação de telemóvel do festival, que proporcionaram aos festivaleiros uma experiência mais pessoal da natureza da ilha, à medida que se aproximavam dos concertos e performances que pareciam surgir a meio dos passeios.

No trilho pedestre do Salto do Cabrito, por exemplo, a poucos quilómetros da capital açoriana, foi possível deambular entre incensos, criptomérias, polígonos de jardim, conteiras, coníferas diversas, cavalos, vacas, vapores geotérmicos e fetos, tudo para acabar no que resta da Central Hídrica da Fajã Redonda a ouvir Holocausto Canibal.

“Isto também é importante para as crianças”, diz à Lusa Rui Tavares, sociólogo e presidente da associação VidAçores, que promoveu a refeição comunitária na Casa do Espírito Santo de Rabo de Peixe, com uma ementa que incluiu bife de atum, sopa de carne, chicharros fritos com molho de vilão e inhame, feijão assado e caçoila.

Para o sociólogo, “este evento é muito importante porque permite dar a conhecer de forma genuína Rabo de Peixe, que tem sido muitas vezes criticada e ostracizada e vítima de algum estigma”, explicou, em alusão à pobreza existente na vila.

Além de providenciar um rendimento complementar a quem cozinha, a refeição comunitária integrada no projeto Receitas do Baú contribui para o trabalho que a associação realiza com crianças e jovens do 1.º ciclo, com o apoio da Câmara Municipal, num programa de “desenvolvimento de competências pessoais e emocionais através do ioga.”

Horas antes da refeição, o mercado de Rabo de Peixe recebia as norte-americanas Angel Bat Dawid e Sophiyah E., naturais de Chicago e Detroit, respetivamente, que conduziram a Banda Fundação Brasileira, com 160 anos de vida e composta em 90% por músicos amadores, num jazz experimental em que o sentimento se sobrepôs à afinação.

“Elas nunca afinaram a banda, porque na realidade não havia muito interesse nisso, só queriam mesmo que o pessoal se sentisse bem a tocar”, explicou Marco Torre, professor no Conservatório Regional de Ponta Delgada e diretor artístico do projeto que trouxe o ‘groove’ norte-americano a Rabo de Peixe.

“Nunca gostei do termo amador, nem do profissional”, concordava Angel Bat Dawid no final do concerto quase improvisado, “porque a música está dentro de todos nós e é o sentimento que importa”.

O sentimento do Tremor fez-se sentir também nas terras altas de S. Miguel, onde ainda subsiste “uma boa representação da flora local”, segundo Martín Souto, biólogo, botânico e investigador no Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade dos Açores.

“Aqui temos flora autóctone de toda a Macaronésia [nome moderno que designa os arquipélagos do Atlântico Norte] e de todo o planeta”, contou, “porque os portugueses estão há quinhentos anos nas ilhas e passaram por vários arquipélagos, desde o Havai a outras ilhas do Pacífico, trazendo assim também flora de todo o mundo”.

Martín Souto apontou que nem todas as invasoras serão necessariamente prejudiciais, até porque, “por exemplo, muito do bosque autóctone foi substituído por criptomérias, que são uma espécie de cedro do Japão, e que aqui planta-se de forma comercial, para a indústria da madeira” e que não vinga tanto nas terras altas.

Um dos pontos altos do festival, 610 metros acima do nível do mar, deu-se na Lagoa de S. Brás com o metal/punk dos Cobrafuma, em que o festivaleiro Francisco Frazão, de capote cor de vinho, alheado ao ‘mosh’ e rodeado de olhares bovinos, sentenciava: “Agora as vacas vão parar de comer erva e passar a fumá-la”.

O Tremor passou ainda pelo Ateneu Comercial de Ponta Delgada, com Tramhouse, Parque Urbano, com a autoproclamada clarividência analítica de Fado Bicha, Coliseu Micaelense, com Pongo, Solar da Graça, com Avalanche Kaito ou Portas do Mar, com Dame Area e outras propostas de eletrónica que foram do kuduro ao baile-funk, entre dezenas de outras “espécies invasoras” que contribuíram para a economia circular da região.