Ainda não nasceste e eu já falo para ti. Falo-te nos meus pensamentos, desde que soube da tua vinda. Falo-te do mundo, da minha vida, do passado e do presente. Não te falo do futuro porque esse será teu. Teu e das tuas opções.
Há dias, a tua avó dizia-me que te imagina parada a olhar-nos, no mesmo corredor onde eu cresci. Sei que terás uma família inteira a proteger-te, tal como as famílias devem fazer. Proteger os seus é natural. Mas, pelo contrário, quero dar-te asas para viveres a tua liberdade. E isso não significa que não te deseje o melhor, muito pelo contrário.
Não te imagino parada, nem a olhar-nos. Imagino-te a correr, nos mesmos lugares onde eu corri. A dares os teus passos, a enfrentares uma realidade diferente quando assumires a nossa posição bípede.
Quero que conheças o mundo tal e qual ele se apresentará a ti. Um mundo complicado. Um mundo onde as fronteiras, a cor da pele, a nossa aparência e até o concelho onde vivemos têm a importância que não era suposto. Um mundo, por vezes, cruel. Não quero ser a tia pessimista, mas sim a realista.
Não quero influenciar-te, nem te projetar como a filha ou o filho que não tive. Nunca. Quero que tu sejas, exatamente, tu. Quero que sejas o resultado das tuas opções, pois só isso poderá fazer de ti uma pessoa genuína.
Quero sensibilizar-te para alguns aspetos da vida. Proporcionar-te as ferramentas para que faças de ti um conjunto de decisões conscientes.
Quando te falo de mim, faço-o sem floreados. Não é fácil lidar com as minhas opções, com as minhas convicções, com as minhas lutas, mas tomei essa decisão, da forma mais consciente possível. Conto-te como me tornei na pessoa que irás conhecer, as razões para defender os Direitos Humanos, os direitos dos animais, a educação como prioridade e acessível sem barreiras, a todas as pessoas, e na forma como esta é o único elevador social que permite acabar com a pobreza, o direito à habitação (sim, Isabela, nem todos têm um tecto e muitas dessas pessoas são marginalizadas, e, ainda, no século XXI, se entende que a punição será a solução para as questões económico-sociais que abundam), o direito à saúde (saúde mental e física). Também te falo de não concordar na forma como os lares para idosos, um mal necessário à nossa sociedade, são entendidos. Será que concordas comigo quando te digo que esses espaços não podem continuar a ser vistos como fins de linha, sem que as pessoas tenham objetivos e percam a autonomia de tomar decisões acerca do seu dia-a-dia?
Outro dia falei-te acerca da violência doméstica e da forma vil como mulheres são mortas à mão de companheiros e ex-companheiros e da forma leviana como tratam de casos já identificados. Contei-te que há uma grande percentagem de mulheres mortas que haviam apresentado queixa? Será que mencionei que há crianças que ficam órfãs devido aos ciúmes de alguém? Disse-te que ainda se tenta justificar a morte destas mulheres como crimes passionais? Consegues perceber isto?
Vens numa altura complicada. Uma guerra, a inflação. Uma fase em que se pretende apostar no turismo como a salvação desta região, embora todos os exemplos que temos, de lugares que vivem do turismo, sejam os de profundas desigualdades sociais. Ainda há dias, falei-te nas mais recentes estatísticas que revelaram o aumento do abandono precoce do ensino, da nossa região ser uma das mais pobres do país, de estarmos na cauda da Europa. Lembro-me de te sensibilizar para a diabolização dos pobres dos mais pobres, na forma como as pessoas que auferem do RSI são tratadas e para o facto de algumas destas pessoas que beneficiam desse apoio trabalharem, mas que devido aos baixos salários praticados não conseguirem fazer face às suas despesas.
Conhecerás o porto das Lajes destruído e viverás tempos como eu vivi, nos anos 80. Verás a preocupação no rosto da tua mãe e do teu pai perante a incerteza acerca da operacionalidade do navio que leva as coisas que tanto necessitas. Há quem faça piadas com este momento que encontrarás e que considere que as pessoas, nas Flores, podem plantar para subsistir. As fraldas devem nascer naquela árvore mais abaixo da casa do tio.
A tua mãe vai querer levar-te ao pediatra que não existe, na ilha. Assistirás às pessoas a comentar acerca do tempo de espera para uma consulta, da evacuação de pessoas para que possam viver. Perceberás que o sistema que se tem vindo a desenhar é para quem tenha posses económicas e consiga ir a consultas fora das Flores.
Tanta coisa que te espera! Sabes que se quiseres ter casa, terás de assumir uma dívida com alguma instituição bancária, e pagarás durante toda a vida esse empréstimo? E isto se tiveres rendimentos que te permitam. Não há uma bolsa pública para habitação, Isabela! E tanta casa que encontrarás a cair. E tanto património regional a cair.
Ainda não te falei da Frida Khalo e do Hitler. Nem da forma como a falta de resposta tem permitido a ascensão da extrema-direita, na Europa. E, na forma, como Portugal já sente os efeitos negativos destas políticas que nos querem separar de todas as pessoas que procuram um lugar onde possam fugir à guerra, à fome, aos efeitos das alterações climáticas…é verdade, há pessoas que insistem em fazer política condenando as pessoas que mais necessitam.
Vou falar-te disso tudo. Não para te influenciar, mas para que tomes as tuas decisões de forma consciente. Essencialmente, porque quero o melhor para ti e de ti.