Inicio com um aparte que pode parecer não estar relacionado com o tema central desta crónica, mas até está. Marcelo veio aos Açores e, uma vez mais, ninguém quis saber da ilha das Flores. Queixaram-se dos lados de S. Jorge e da Graciosa, com razão certamente. E ficou a promessa de ele vir ao grupo Ocidental. Talvez seja a promessa para não esquecer a promessa que ele já tinha prometido várias vezes, desde 2019, e nunca cumpriu. É promessa para açor ver.

Palavras levam-nas o vento. É assim que muita gente entende a política, nos dias que correm. E isso deve-se, desde logo, à fraqueza da nossa classe de supostos profissionais nesta área. A começar pelo próprio Marcelo, que esperou décadas para que o nível fosse tão baixo que lhe permitisse voltar das masmorras para onde tinha sido atirado, quando falhou nas suas pretensões de ser primeiro-ministro de forma estrondosa. Foi preciso o nível alcançar as tenebrosas figuras de Passos Coelho e Cavaco Silva, na sua versão metaforicamente mumificada, para o país decidir que talvez Marcelo não fosse assim tão mal. Mas foi. Foi pior. Foi um símbolo dos tempos em que vivemos.

Toda esta introdução para vos falar de Gaza. Já sei que muitas pessoas, assim que leram a primeira frase deste parágrafo, decidiram mudar de texto. É mais fácil assim, não é? O principal poder deste admirável mundo novo é fazer com que consigamos fugir a qualquer responsabilidade sem aumentar substancialmente o peso na nossa consciência. Afinal de contas, basta mudar de página, abrir uns vídeos curtos nas redes sociais e passar três horas a ver jovens sem camisa a cozinharem pratos rebuscados que nunca na vida vamos comer, quanto mais confecionar.

Entretanto, Gaza continua. A fome, que se faz sentir de forma intermitente há décadas e décadas, regressou com ávida vontade de devorar aquele povo. Por todo o lado, multiplicam-se as frases e os textos de repúdio, timidamente intercalados pelas vozes das pessoas que, sem qualquer pingo de vergonha, continuam a negar o evento genocida em curso. Nada restará de Humanidade ali.

Todas as pessoas são bem-vindas no campo da crítica e denúncia do processo de destruição maciça que decorre na faixa de Gaza. Mesmo que eu saiba, como as minhas quem me lê que nem todas as pessoas que agora escrevem sobre o assunto quiseram assumir a realidade dos factos há dois anos. Tudo bem. Há sempre tempo para mais uma voz que se levante contra as ditaduras e os monstrengos. Todavia, importa recordar que não nos pode bastar dizer que há fome em Gaza. É preciso explicar porque é que ela existe.

A sistemática destruição do povo palestiniano pelas mãos ensanguentadas de regimes a mando do Ocidente não é mais do que um tubo de ensaio para os grandes poderes bélicos do capital. Assim o é há décadas. Empresas de gigantes militares brotam dos Estados Unidos, e de alguns países aliados, e vão até Gaza alimentar o aparelho do conflito, fornecendo armas relativamente rudimentares a um lado, e distribuindo tecnologia de ponta ao outro. É preciso testar equipamento. E ganhar dinheiro com isso. Que se lixem as vidas humanas.

Assim, o problema de Gaza é, na sua forma mais primária, o mesmo problema de sempre. Os mais ricos querem continuar a ser os mais poderosos e para isso não se preocupam com o conflito moral de se devorar povos inteiros.

Claro que há muitas nuances. Israel, enquanto povo, não é só feito de monstros. O seu atual governo é, claramente, alimentado pela ideologia fascista que carregou Trump até ao trono e, muito em breve, vai fazer o mesmo a Ventura, se ninguém se mexer a tempo e horas. Do lado de lá, o infame Hamas terá um peso substancial na forma como a Palestina continua a existir, e na maneira como são tratadas as pessoas debaixo de um regime teológico repressivo, que carrega dogmas profundos. Ainda assim, não me esqueço das muitas informações que foram chegando, ao longo dos vários mandatos de Netanyahu, onde ficou atestada a influência de Israel sobre o funcionamento do Hamas. A fome, juntando-se à vontade de comer, para alimentar as empresas e matar as crianças.

Eis então que alcançamos o ponto crucial deste texto. A grande maioria das pessoas, de direita, esquerda, centro, ignorantes ou informadas, começa a admitir que há fome e genocídio. Uma parte considerável, até apela a que a coisa pare. Mas depois esbarramos na inverdade do mundo de Trump, pós-factos e a favor de sentimentos e certezas unipessoais.

No dia 3 de agosto, um grupo de pessoas rumou à Base das Lajes para protestar o peso crescente do regime fascista dos Estados Unidos no genocídio de Gaza. As informações atuais apontam para uma “fundação” privada, gerida pelos norte-americanos, e principal responsável pela má distribuição de bens pelos mais necessitados. Essa mesma empresa, mascarada de ajuda, está protegida por uma milícia de paramilitares que, ao que parece, se diverte a jogar ao tiro ao alvo com crianças.

As nossas gentes, aqui mesmo na ilha Terceira, foram protestar essas verdades, mobilizadas por um movimento social e espontâneo “Azores for Gaza”. Levaram consigo cartazes apelando à moral e ao humanismo. E levaram com um chorrilho de comentários ignorantes, plenos de ódio e distorção da realidade, inflamados pela propaganda dos tais vídeos de dez segundos que correm pelas redes. As nossas gentes que ali foram para mostrar cartazes apelando ao fim da morte de crianças, e receberam chapadas duras, sobre miúdos que merecem morrer porque são terroristas, e imagens com mulheres bem nutridas, saídas diretamente da inteligência cada vez menos artificial.

Foi assim que aqui viemos parar. Tal como Marcelo esperou por um mundo medíocre para conseguir ser presidente, mesmo sentado em mentiras, meias-verdades e selfies, também Netanyahu aguardou o seu momento para consagrar o genocídio. Com o mundo preso às distorções dos ecrãs, com o presidente mais incompetente da história dos Estados Unidos e com o capitalismo a entrar na sua fase final, e mais perigosa, Gaza continua a ser aquilo que sempre foi. Um laboratório de testes. Só que agora, o teste que estão a realizar é para saber como é que nos vão comer a todos. Uma espécie de solução final, promovida por quem deveria ter memória. E no fim, como diria o Zeca, não fica nada. Nem sequer a nossa Humanidade, perdida atrás da luz do telemóvel.

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