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Os Açores estão nomeados para a categoria de melhor destino arquipelágico europeu. No entanto, não foi essa a razão pela qual a comunicação social regional e nacional deu destaque à nossa Região, na passada semana. Não foi pela beleza, pela simplicidade e espontaneidade da nossa gente ou pelo carácter único dos Açores que fomos motivo de notícias constantes. Foi, mais um acontecimento “imprevisível” (como assim, o argumentam), numa tourada à corda.

Não me vou debruçar sobre questões históricas, éticas e filosóficas acerca de tal prática. É um tema fraturante, divide opiniões, mas, sem dúvida, é matéria acerca da qual é importante que se reflita no que realmente pretendemos.

No passado dia 30 de junho, morreu mais um touro, durante um evento, na ilha Terceira. Desta vez, e alegadamente, por afogamento, o que resulta num processo particularmente violento, ao qual o bovino é exposto. Falecido nas águas ao largo da ilha das festas, reacendeu-se a velha discussão e reafirmou-se a potente negação dos verdadeiros aficionados, que continuam a defender cegamente uma realidade por demais evidente.

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Gostem mais, gostem menos, ou sejam realisticamente contra, a verdade é que a tourada destes últimos tempos não é a mesma de há umas décadas. Podem alegar que tal se verifica pelos mais diversos motivos. Mas, a constatação é de que parece que há mais animais a morrer. E, sem que existam estatísticas concretas, também parece que há mais feridos e mais complicações. Toda a gente sabe disso. Não foi à toa que reduziram o tamanho dos arraiais este ano, pois não? Só que algumas das pessoas que percebem o que se passa, preferem defender-se com o ato de negar tudo, para poderem continuar a usufruir de uma prática que merece, no mínimo, ser reapreciada. Para mim, não é segredo, preferia acabar com ela de vez.

Uma coisa é certa: se a população residente, na Terceira, exigisse do Governo Regional, da forma como defende a manutenção da tourada e argumenta situações “imprevisíveis”, a Terceira já teria um futuro consolidado no eixo Porto comercial da Praia da Vitória-Aeroporto, uma aerogare em condições e que correspondesse ao projeto anunciado, o problema de contaminação de aquíferos, solos e subsolos, por hidrocarbonetos num processo muito mais avançado, um tecido empresarial fortalecido, entre outros. Mas, é mais fácil distrair as massas com papas e bolos.

Seja como for, o touro que faleceu nas águas da ilha Terceira pode também ser entendido, noutros termos, como uma espécie de reflexo simbólico da onda que cresce aos nossos olhos, e que teimamos em ignorar. No horizonte, uma verdadeira nuvem rolo, que se levanta em direção ao nosso arquipélago, e ameaça ser mais do que apenas fogo de vista. Tal como os amantes da prática da tourada fingem que nada se passa, também aqui verificamos a presença de um conjunto cada vez maior de negacionistas em águas insulares, que insistem em olhar para o lado, enquanto o perigo aumenta a olhos vistos.

A economia está profundamente debilitada. Quem o diz é o próprio Secretário, que depois de anos a tentar colocar um açaime na dívida, finalmente parece ter percebido que a solução para o crescimento de um povo não passa por obrigar as suas gentes a passarem fome. Já vai tarde. Afirmando publicamente o desaire que muita gente já conhecia, o responsável pela pasta dos números deixou claro que mais cortes virão. Depois de anos a engolir orçamentos com cativações monstruosas e linhas vermelhas no desporto, na cultura ou nos transportes, por exemplo, como será a continuidade deste governo, agora que se aproximam lápis inquisitórios junto de pastas determinantes? No final do dia, o povo ordenará.

Cá, tal como com Montenegro, o cenário adensa-se de forma clara. O governo de direita aproxima-se com alguma rapidez das políticas neoliberais extremadas, porque acredita ver nessa solução o remédio para todos os males. A consequência imediata será a dissolução das redes de proteção social, arduamente construídas durante décadas de democracia, facilmente desmontáveis em dois ou três anos. É tempo de nos preocuparmos com a forte possibilidade de não termos reformas. Nos Estados Unidos, essa realidade já chegou, afinal de contas.

Outro culpado que será sacrificado nas águas turvas da política açoriana será o imigrante. Assisti, com alguma satisfação, aos anúncios da Secretaria dos Assuntos Parlamentares e Comunidades, referentes à melhoria de mecanismos para integrar cidadãos e cidadãs estrangeiros na realidade insular. E depois entristeci-me com a reação exacerbada que se pode encontrar, na própria página do Governo Regional, com comentários nefastos, apelando à tortura e à morte. Tudo isto devidamente saneado e promovido por um partido com assento parlamentar, entenda-se. Talvez as próximas touradas sejam feitas com cidadãos cabo-verdianos em substituição dos touros? Assim navega o Portugal que se diz de bem.

Por fim, o derradeiro sacrifício será o processo de privatização das ilhas, já anteriormente iniciado, mas que se almeja consolidar nos próximos tempos, começando pela enfraquecida companhia aérea. Praticamente todos os dias surgem gritos de incentivo para serem espetadas as derradeiras espadas no lombo da SATA, terminando a sua corrida moribunda, e atirando-a ao mar. Com ela, irá a liberdade de deslocação de um número crescente de pessoas, muitas delas necessitadas, pela saúde ou pela justiça. Depois, serão as escolas e os hospitais, sendo esse um trabalho já iniciado, que se prevê concretizado até ao final da década, em muitos gabinetes endireitados, pelo país fora.

Fomentar a crise e o caos é uma política antiga, já bem conhecida de quem estuda história. Quanto mais pobres, mais fácil é controlar a região que se governa. Os Açores não serão exceção. Um arquipélago historicamente conservador, por vezes revolucionário, e sempre periférico, sito na encruzilhada de ventos e atlantes, ferido de esperança no seu futuro. Onde Jénifers são processadas em tribunais, e almirantes desejam conquistar votos com o apelo à guerra. Aqui, todos nós seremos touros a sacrificar nas águas frias do capitalismo que agora termina o processo de nos engolir a todos.

Gostem de touradas ou não gostem, a verdade é que quem correrá à frente dos pastores seremos nós, os que mais precisam. E no final, ganhará o sexto touro. O poder económico. A corda está esticada. Ou a rebentamos depressa, ou já sabem como acabará.

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