A companhia Cães do Mar, dos Açores, criou um espetáculo que retrata a dor da emigração açoriana para os Estados Unidos, iniciada nos finais do século XIX, mas que quer também fazer pensar sobre o mundo atual.

“Não nos devemos nunca esquecer do sofrimento, do sacrifício daqueles que partiram, das razões pelas quais partiram, acima de tudo o percurso difícil que tiveram e a forma como tiveram de lidar com um mundo inteiramente diferente daquele a que estavam habituados, a forma como tiveram de sobreviver neste mundo”, afirmou, em declarações aos jornalistas, a diretor artística da companhia Cães do Mar, Ana Brum.

“Friza, as palavras que não nos cabem na boca” é o título do espetáculo, que se estreia esta sexta-feira em Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, onde está sediada a companhia profissional Cães do Mar.

O termo que dá título à peça, ainda hoje utilizado nos Açores, é uma adaptação da palavra inglesa “freezer” (congelador).

“Vai beber inspiração a algumas histórias da emigração açoriana e também um pouco à sua linguagem, daí foi buscar o nome. São aquelas palavras que eles tinham de mastigar até se tornarem algo adaptável ao nosso palato”, explicou Ana Brum, que assina a criação do espetáculo com os atores Diana Rosa e Paulo Quedas.

Na performance, que junta teatro, dança, música, vídeo e poesia, volta e meia surgem algumas dessas palavras criadas por emigrantes e que ainda hoje fazem parte do vocabulário dos açorianos.

“Palavras das quais nos rimos tanto, mas que são sinal também de um percurso feito de muito sofrimento e de muitos sacrifícios de gente que é nossa, que partiu daqui, tal como outros partem hoje me dia de outros sítios”, frisou a diretora artística.

A pesquisa envolveu uma recolha de fotografias enviadas dos Estados Unidos, a leitura de vários livros, de emigrantes açorianos, como Diniz Borges e Onésimo Teotónio de Almeida, mas também a partilha de histórias de familiares.

“Todos nós temos família nos Estados Unidos, no Brasil, no Canadá… Há sempre um parente fora do país. São histórias muito pessoais, ao fim ao cabo, também”, contou Ana Brum.

A diretora artística acredita que o espetáculo bilingue pode romper as barreiras da insularidade.

“Eu diria que pode chegar a outras parte do mundo. Mais do que ao país, que é um país de migrantes, que se debate neste momento com uma série de questões relacionadas com o acolhimento, mas é um país de exportação de pessoas. Nós exportámos migrantes durante séculos e é algo que nos deveria fazer parar e pensar”, apontou.

Quando o pano se abre, estão em palco apenas Diana Rosa e Paulo Quedas, dentro de redes, onde são projetadas imagens de mar, acompanhadas pelo som das ondas.

A performance de dança e teatro tem “muita fisicalidade”, mas a história não é contada apenas por gestos e palavras. A música, assinada por Teresa Gentil e Sarah Ross, “serve de fio condutor”.

“Há uma série de ambientes sonoros pelos quais vamos passando, que acabam por contar também uma narrativa. A música acaba por ser uma chave para ligar todos os elementos que estão no espetáculo”, adiantou Teresa Gentil.

Para além de temas originais, a peça reúne recolhas tradicionais, como a “Santina”, que é ouvida no primeiro momento de dança, mas também “sons retirados do contexto rural, desde os assobios ao chamamento dos animais” e “influências dos Estados Unidos”.

“Eu vejo sempre o meu trabalho, e a arte de uma forma geral, como uma ferramenta essencial na transformação social. E de facto este tipo de espetáculos, que fala sobre questões que nós temos de trazer à discussão, são outras maneiras de ver a realidade”, vincou a compositora.

Teresa Gentil não é açoriana, ainda que tenha descoberto que a trisavó nasceu no arquipélago, mas passou muitos anos em Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel, onde se cruzou com o vocabulário usado na peça e que aos poucos também vai adotando.

“Friza usava-se. Passámos por uma série delas e de repente lembrei-me que se usava e eu nem sabia o que queriam dizer. Ainda ontem estava a dizer: fui comprar gamas [pastilhas elásticas]. E toda a gente se riu muito”, contou.

O espetáculo faz-se também de poesia, com um texto do escritor norte-americano Stuart Blazer.

“Queria uma linguagem em português, inglês, mas ao mesmo tempo algo entre os dois, porque faz parte desta colaboração maravilhosa entre música, dança, teatro… Queria uma linguagem que vai e vem como as ondas. Esta imagem de um náufrago, a chegar a uma costa estrangeira. Eu queria uma linguagem que honrasse isso e abrisse diferentes possibilidades”, revelou.

Também o escritor tem uma ligação aos Açores. Viveu na ilha Terceira entre 2000 e 2006, onde acompanhou um dos momentos mais importantes da história recente dos Estados Unidos.

“Estava cá no 11 de setembro. Foi muito estranho para um americano. Eu era dono de um bar sem televisão e ouvi a história das pessoas que entravam no bar, por acaso”, lembrou.

Em 2013, Stuart Blazer regressou à Terceira para publicar um livro, que descreveu como “uma canção de amor aos Açores”.

Desde então que não visitava a ilha, onde espera regressar todos os anos, de preferência em novas colaborações com a companhia Cães do Mar.

A peça, que está em cena no Teatro Angrense, na sexta-feira e no sábado, conta com fotografia e videografia de Laura Brasil, design de luz de Maurício Freitas e figurinos de Sílvia Teixeira.

PUB