Alexandra Manes

Nasceu na cidade de Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. Era filho do Atlântico, tal como as açorianas e os açorianos. Tinha vinte e sete anos. Não viu a madrugada dos vinte e oito. Alcindo Monteiro estava no Bairro Alto, em Lisboa, para dançar e aproveitar a noite de 10 de junho, dia em que se deveria estar a homenagear o país. Foi ali apanhado por um grupo de pessoas, portugueses a quem Ventura chamaria “de bem”, e espancado até morrer, dois dias depois, no hospital.

A história é conhecida, e vai agora ser retransmitida, em Angra do Heroísmo, numa sessão de cinema, no próximo dia 10, promovida por um grupo de cidadãs e cidadãos que manifestam preocupação com o crescimento da extrema-direita, do ódio e do racismo.

O que se passou na Assembleia da República, por estes dias, é emblemático do problema que a democracia ganha ao permitir intolerantes nas cadeiras do seu mais relevante Senado. Quando se ergueram as vozes para criticar Marcelo Rebelo de Sousa, a ideia das reparações históricas e outras frases eventualmente pouco ponderadas que foram proferidas pelo presidente, ergueu-se um coro de pessoas que, até então, mantinham algum decoro nas suas opiniões.

Quando o presidente democraticamente eleito e consensualizado, escolhido para orientar os trabalhos da Assembleia da República, não foi capaz de conter as afirmações evidentemente provocatórias, do líder da extrema-direita portuguesa, abriu-se uma porta. E quando, em resposta a uma interpelação da bancada do Partido Socialista, o mesmo presidente não foi capaz de peremptoriamente assegurar que não pode valer tudo, escancarou-se o contentor que Pandora nunca desejou descobrir.

O racismo, o ódio e a xenofobia são bandeiras do populismo. Sempre estiveram entre nós, bem antes de Alcindo Monteiro morrer. Mas, agora estão hasteadas na porta do Parlamento.

Assistimos ao choque de algumas forças conservadoras, pelo levantamento de bandeiras multicolores, em defesa da igualdade, da inclusão e da liberdade. Forças que calam e consentem que se chame de tudo um pouco a grupos de seres humanos. Nos debates televisivos, os representantes do Partido Social-Democrata, da Iniciativa Liberal e de outras forças irmãs, protegem os discípulos de Ventura, assegurando que o que se passou não é grave. Pois não. É gravíssimo!

Aguiar-Branco veio, mais tarde, tentar apagar o fogo, procurando, por um lado, distorcer o que disse, ao modo de Nuno Melo e o serviço militar. Por outro, propôs a criação de novas figuras regimentais, desnecessárias, pois o crime de ódio é figura jurídica evidente, e as obrigações e responsabilidades de um presidente da Assembleia da República também o são.

Dias depois, ainda no começo desta legislatura que se revela cada vez mais incerta, Isabel Moreira, deputada pelo PS, denunciou uma série de ataques ofensivos, de que as pessoas, na sua maioria mulheres, sofrem, por parte dos militantes da direita do ódio nos apartes e nos corredores da mesma Assembleia.

Isabel limitou-se a gritar o que todas as pessoas que já trabalharam num Parlamento com pessoas do culto da extrema direita sabem: os membros de tal partido não respeitam, nem fazem por respeitar! Tenho experiência no assunto, e mesmo nunca tendo receio de qualquer comentário, posso apenas partilhar que foram poucos os plenários em que não tenha sido alvo de intervenções e apartes sexistas e de body shaming, acompanhados pelos risos, e, por vezes, aplausos de membros do Governo Regional e de alguns deputados. Mas, não fui a única a ser alvo de insultos misóginos e sexistas. Em geral, sempre da direita, e em particular, daquela bancada que mais odeia as mulheres que pensam livremente.

Medo nunca tive, mas revoltava-me, por saber que aqueles que me procuravam ofender, certamente o faziam junto de outras mulheres.

Nas televisões, deputados do PSD, CDS e afins, defendem Ventura e os seus correligionários. Dizem que, se há exageros, é da parte das mulheres que se queixam. Imagino que gostem delas caladinhas, em casa. Não o permitiremos.

Pode parecer que ganha, novamente, a extrema-direita. Mas ainda é tempo de lutar. Em nome de Alcindo Monteiro, Cláudia Simões, Bruno Candé, Aldemiro e de tantas pessoas vítimas da cor da sua pele. Em nome da sanguinária Guerra Colonial. Do Tarrafal, do Aljube e do Depósito de Presos do Monte Brasil de Angra do Heroísmo. Das Isabel, Romualda ,Francisca, Inês, Catarina, Marisa, Joacine, Mariana, Andreia, Ana Luís, Patrícia, Marta, Sandra, Célia, Isabel, Valdemira, Zuraida e de todas as mulheres, mesmo aquelas que se julgam protegidas.

Não basta não ser racista. É preciso ser-se antirracista.

Não basta não ser machista. É preciso saber-se feminista.

Para que eles nunca se esqueçam de que fascismo, nunca mais.

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