Tempos houve, na nossa Região, em que o mais grave que se discutiu após um debate político foi o problema das sapatilhas. Quero, com isto, recordar o meu primeiro momento público nessas andanças, quando me fiz ao palco, em 2016, e tomei a palavra para defender as minhas posições, numa sala repleta de homens, onde era a mais inexperiente, mas nunca a mais frágil.
Ali, naquele dia, ganhei experiência e cicatrizes, num dia ventoso, como muitos o são, na ilha das Flores. O Herberto Gomes, que fez anos há uns dias, era o moderador daquele espaço. Também ele, pelo que há dias apurei, estava a começar a sua carreira naquelas andanças. Imaginem, um profissional de excelência como o Herberto, sem qualquer experiência em debates. Naquele tempo, não assim há tantos anos, os debates não se tinham transformado no circo mediático que hoje o povo assinala.
Herberto Gomes assumiu-se, como de costume, com um ar capaz, devidamente habilitado e condutor dos trabalhos com mão firme, mas justa. E eu aprendi. Com calma, serenidade e certeza. Aprendi que era preciso lutar pelas minhas ideias e ideais. Crença que mantenho, mesmo que agora afastada de estruturas partidárias.
Voltando ainda ao Herberto, que muito aprecio, e que é um exemplo para o jornalismo nacional e regional. Naquele dia, o Herberto calçava umas sapatilhas. E isso parece que foi motivo de faladura. Eu também tinha ido ao debate de sapatilhas. Espelho de inexperiência, terão dito algumas vozes dissonantes. Eu queria era conforto, face à ansiedade que sentia. E o Herberto, farto de andar de avião e de barco de um lado para o outro, imagino que também estivesse em busca de pés menos doridos.
Criticaram-se apenas as sapatilhas, porque na altura não havia forças dissuasoras, que só existem para levantar polémicas e temas dissonantes, forçando a sociedade a discutir o indiscutível. Falou-se mal do calçado, porque vivíamos, como ainda vivemos, num arquipélago conservador, que vai aceitando a muito custo e de forma muito lenta a necessária mudança de paradigmas sociais.
As sapatilhas do Herberto, e as minhas já agora, sempre estiveram na minha memória. Lembro-me daquele dia, quando espreito o estado da arte do nosso pequeno cantinho insular, do nosso país e do nosso mundo. Onde os debates são agora jogos de futebol, com pontuação e comentário político revestido de peixeirada e mentiras normalizadas. Onde o jornalismo, por muito que se esforce, não consegue impor o profissionalismo face a um conjunto de factores que contribuem para que uma parte considerável dos profissionais utilize calçado adequado e formação inadequada, para indevidamente dar destaque às coisas que vendem.
Hoje, menos de dez anos volvidos, aquele debate nunca teria acontecido. Hoje, seriam discutidos burros e jumentos, bananas e subsídios, com berros, insultos, apartes provocadores e expressões faciais obscenas. Hoje, tudo seria diferente, e o Herberto já está alegadamente reformado, mesmo que se mantenha no coração de todas e de todos nós, pela imagem de marca que nos deixou.
Lembrei-me dele no outro dia, quando descobri o que se passava na RTP, com a reestruturação do canal público associado à informação, para se passar a vender notícias e polémicas. Vítor Gonçalves, o novo diretor nomeado pela Spinumviva, assumiu uma postura que apelida de renovadora, ainda que mais pareça demolidora. Chegou com uma repulsa pelo jornalismo tradicional, focando o seu olhar no populismo e na venda de notícias. Mudou o nome da nossa RTP3 e expulsou a Raquel Varela dos comentários certeiros a que sempre nos habituou. Ainda pior: pensou mesmo em trazer um influenciador da extrema mais direita do nosso país para dar palco ao ódio. Ou seja, retirou uma boa parte do que havia de bom, para nos dar o que de pior há nas nossas ruas.
Algumas vozes dirão que o tal influenciador do neonazismo é apenas um reflexo da nossa sociedade. Dirão, inclusive, que o afastamento da Raquel é sintoma de um país que vota cada vez menos à esquerda, e que, portanto, os comentários dela já não são necessários. Talvez as mesmas vozes que subsistem, de 2016 e de antes, a discutir sapatilhas e não conteúdos. Eu digo que não. Que é preciso continuar a falar como a Raquel fala, e chamar os influenciadores do nojo pelos seus nomes.
Vítor Gonçalves foi confrontado pela Provedora, acerca dos motivos que levaram ao afastamento de Raquel Varela. Nada de jeito foi dito. Para além de usar a desculpa de não ter despedido a pessoa, apenas não a renovou, qualquer outra explicação ficou pelo caminho. A verdade, que nós sabemos, mas não podemos dizer, é que ela saiu da televisão pública porque ofendia a sensibilidade do primeiro-ministro e dos seus. Quanto ao outro menino que odeia mulheres e defende Salazar, acabou por sair de fininho, sem mais explicação, que não a alegada ignorância da linha editorial atual. Ignorantes serão, certamente.
Entretanto, Raquel Varela abraçou um novo projeto. O jornal «Maio», que chegou para ombrear com «AbrilAbril» e outras forças difusoras da pluralidade jornalística, por oposição às atuais linhas extremistas e populistas que tomaram conta dos nossos jornais e televisões. Vozes inteligentes, que se desejam imparciais, vão trabalhar com «Maio» na procura por uma verdade e pela justiça que teima em ser afastada de nós. Junto-me ao apoio do projeto de Raquel Varela, Joel Neto e à restante equipa. Junto-me às suas vozes e deixo uma palavra sentida de apoio. Porque tenho saudades das minhas sapatilhas, do Herberto, e do tempo em que a política se fazia de forma digna, mesmo que alguns pensem que mal vestida.

















