Desidério Erasmo, o tal de Roterdão, escreveu um longo e complexo ensaio sobre a loucura humana, à sua época, no começo do século XVI. Dedicou-o à queda de todas as instituições que governavam a vida quotidiana, conforme eram conhecidas então, e promoveu uma nova ortodoxia, que viria a formar a base de uma escola de pensamento que ainda hoje encontramos entre nós.

Simplifico o Elogio de Erasmo porque não tenho tempo, nem capacidade, para esmiuçar o seu rasgo de genialidade. E, também, por não é esse o propósito deste texto. O que me coloca a terreiro, discutindo loucuras e contradições, apelando a revoltas e revoluções, deixando-me sem voz, mas nunca sem ações, é o final dos tempos conforme os conhecemos. Tal como no tempo de Desidério, a Humanidade assiste a um momento formativo. Um novo amanhã aproxima-se. Naquela altura, vivia-se o espírito do Renascimento, com toda a sua podridão e potencialidade. Hoje, o espírito do pós-modernismo e do capitalismo enraivecido, com todas as regalias e demasiadas falhas.

Escrevo estas linhas enquanto revejo o discurso do ditador norte-americano, no pódio da sua Casa Branca, outrora símbolo de propaganda de um mundo melhor, atualmente centro de um viperino circo de vaidades e mentiras. Não assisto apenas aos soundbytes que nos vendem na comunicação social. Estou a rever o discurso, por inteiro. Reparo nos maneirismos envelhecidos de um homem à beira da demência. Nas mentiras que repete, e na rapidez em desconversar quando se perde. Observo os lacaios que o ladeiam, ela de olhos mortos e alma perdida, ele de sorriso de escárnio e olhar sanguinário, antecipando a chacina.

Não sei o que virá da decisão de Trump em invadir a sua própria capital. Sabemos, desde logo, que é uma medida sem justificação possível, considerando os dados disponíveis que indicam que a criminalidade tem sido inflacionada pelo próprio governo para ganhar apoiantes. Qualquer semelhança com Carlos Moedas não será de descurar. Nos próximos dias, novidades surgirão rapidamente. Não me apetecia escrever sobre este tema agora, mas a voz dentro de mim grita por alguma maneira de colocar cá fora a angústia de ver os Estados Unidos da América e morrerem em horário nobre na minha televisão. E temo que a seguir seremos nós.

Dentro da loucura do ditador americano, falou-se no encontro com Putin, que já se concretizou, no Alasca, apesar de ter sido referido como sendo na Rússia. Os lapsos linguísticos há muito que deixaram de ter piada. Falou-se na guerra que o futuro Nobel da paz admitiu vir a terminar em breve, com a troca de territórios. Que é como quem diz, com a capitulação da Europa e a tomada de posse do novo eixo do mal, entre Washington, dominada por tropas de choque, Moscovo, controlada pelo terror da espionagem de inspiração soviética, e Telavive, laboratório bélico para o futuro de uma Humanidade (ainda mais) oprimida pelo grande Capital.

Eis-nos, então, na fase final da famosa nova ordem mundial. Duas décadas e uns trocos depois do começo do século, com o ataque terrorista mais famoso da história recente, o mundo atingiu o limite da sua capacidade de sobrevivência. Compras para dois dias custam o mesmo que para duas semanas, há apenas uns anos. Uma casa no centro de Angra do Heroísmo, para uma pessoa, custa mais de metade do ordenado mínimo em Portugal. E os políticos assumem essa realidade friamente, como se fosse culpa de uma mãe que almeja cuidar da sua criança mais uns dias. É deixar andar, e que morram os mais fracos?

Voltemos aos Estados Unidos. Em Nova Iorque, um político chamado Zohran Mamdani tem feito escola, por estes dias, com uma vitória estrondosa nas primárias para a eleição do próximo Mayor daquela cidade. Contra um aparelho fortíssimo, liderado por bilionários, cegos do culto trumpista e velhas cabeças do extremo centro, Mamdani ergueu um movimento popular contra o capitalismo sem lei, trabalhando para salvar profissões em risco, como os taxistas, focando-se em medidas concretas para melhorar o acesso à habitação, aos transportes públicos gratuitos e a outras infraestruturas essenciais, que foram sugadas pelos CEO vampiros desta vida. Zohran levantou os braços contra o sistema e afirmou que nada mais fará sentido dali para a frente, se não formos capazes de mudar.

Do outro lado do país, Bernie Sanders enche salas, estádios e arenas, em estados historicamente associados ao pensamento conservador, para convencer americanas e americanos a lutar pela sua sobrevivência. Mais impostos para os mais ricos. Mais soluções de trabalho, casas com dignidade, saúde para todos e escolas adequadas, com formação valorizada. Coisas que parecem simples, mas que agora são criminosas aos olhos dos vampirescos CEO que dominam a extrema-direita fascista que se senta em Washington. O mesmo tem feito Alexandria Ocasio-Cortez, uma das grandes esperanças do futuro americano, que lidera movimentos e ondas de apoio contra o ditador, bem como contra os seus próprios colegas de partido que apregoam a manutenção do status quo.

Eis-nos, então, perante uma solução que parece cada vez mais a última hipótese. Portugal caminha, a olhos vistos, para um regime opressor nos moldes do trumpismo. Montenegro está irritado com a empatia de alguns adversários. Ventura quer abolir a Constituição quando ela não trabalha para ele. Por todo o lado, multiplicam-se mentiras e mentirosos, com comentadores de televisão pagos para destruir a democracia e bobos da corte ocupados a entreter argumentos de cordel dignos do ensaio de Erasmo de Roterdão. Já vimos estes filmes. Estamos longe de ter tropas a marchar em Lisboa. Mas não vivemos num mundo em que isso será impossível de acontecer, dentro de menos de uma década. Mais cego é quem não o quiser ver.

Precisamos, portanto, de novos líderes. De Zohran Mamdani e Alexandria Ocasio-Cortez. Precisamos de ouvir vozes sábias que foram apagadas pelo centrismo extremado, tal como Bernie o foi do outro lado do Atlântico. Precisamos de um movimento que pare Ventura e os seus lacaios, antes que ele nos infete a todos com o seu ódio venenoso. As autárquicas serão um bom ponto de recomeço. Para breve, tenciono analisar os programas das candidaturas para Angra do Heroísmo e Praia da Vitória. Perceber com o que contamos. E com os que não contam connosco.

Termino, lamentando a situação de descalabro que Portugal continental enfrenta. Fogos que consomem vidas, a paredes meias com um governo ineficaz que decidiu festejar e brindar na Festa do Pontal, nas noites quentes do Algarve, anunciando o regresso da Fórmula 1 a Portugal, em vez de ouvir os alertas de autarcas e corpos de Bombeiros que combatiam as chamas. O fogo deflagrava a cada copo de gin e de imperial. Não foi a espuma da cerveja que combateu, e combate, as chamas. São corporações de Bombeiros e população. Triste constatar o abandono daquelas pessoas e a desfaçatez de Montenegro e Marcelo, nos festejos partidários.

Antes que contemos apenas com a Loucura. Lutem, porque pode muito bem não haver amanhã.

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