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Na altura, em dois mil e vinte e troca o passo, a Visão fez uma capa com António Costa, citando uma suposta resposta do então primeiro-ministro, numa entrevista sobre a continuidade do seu governo de maioria absoluta. Se eu não tivesse passado lá já depois disso, acreditaria que tinha caído o Carmo e a Trindade, pela intensidade da resposta da oposição da época. Ainda hoje, uma pesquisa rápida no Google revela-nos a posição espumada do CDS-PP e do PSD, cujos líderes não mudaram. Escusado será dizer qual a postura irracional dos populistas liberais ou dos salazaristas. A indignação foi abominável. Pelo país fora correram rios de tinta em jornais. Os gritos de acusação de estrangulamento por parte da ditadura socialista ecoaram nas esquinas e avenidas do nosso calhau plantado junto ao Atlântico. E Portugal tremeu.

António Costa foi derrubado antes do final do seu mandato. Os motivos, verdadeiros ou falsos, que levaram a esse acontecimento são bem conhecidos. Não vou perder tempo a discutir a validade da investigação. Ninguém quer saber disso, hoje em dia. Verdade seja dita, o resultado foi bastante positivo para o antigo primeiro-ministro, a nível pessoal, e para a oposição de direita extremada e de extrema direita, a nível político. O resto, já não parece interessar.

Entretanto, Montenegro foi eleito, sem maioria, por duas vezes, espelhando um país que não sabe o que quer, e reforçando o peso dos mal informados e da abstenção. Os principais atores políticos daquela bancada direita são os mesmos, se descontarmos os que saltaram do PPM, do PSD e principalmente do CDS para as bancadas dos salazarentos. Quem se sentava indignado contra Costa, em 2022, era Nuno Melo e Hugo Soares. Os mesmos que, há uns dias atrás, assinaram acordos de fraquíssima veleidade constitucional para destruir toda a base de legislação portuguesa referente à boa integração dos povos que nos visitam. Assinaram com os supostos adversários, claro está.

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Foi num acordo de pessoas que precisam de conferir no dicionário o que é um cavalheiro, que se instalou a nova legislação sobre imigração e nacionalidade. A criação de uma espécie de ICE à portuguesa, polícia política que vai servir para acolher no seu seio os elementos extremados dos movimentos neonazis, é apenas o começo da trumpização nacional. Montenegro sorriu. Nuno Melo inchou. Hugo Soares virou-se para a bancada do PS e terá gritado: “habituem-se”. Soa familiar, não é?

Só que desta vez não há indignação. Poucas são as vozes, a não ser as ditas elites pensantes, que vieram para a rua fazer tremer Portugal. A comunicação social apagou o caso, remetendo-o para uma paródia referente a António Vitorino, com mais de vinte anos, quanto toda a gente sabe que era sobre Costa que eles falavam. Agora não interessa pegar na impunidade da classe governante nem na soberba da maioria instalada. Agora, conta mais fazer de conta que o problema principal do país é o imigrante e os papéis que ele precisa de assinar para ser legal. Nunca é de mais reforçar a importância que a nossa classe de jornalistas está a ter na ascensão do novo fascismo.

Confesso-vos que esperei alguma indignação. Talvez até um movimento de raiz a começar nas próprias bases sociais-democratas, contra tamanha arrogância de Soares e Montenegro, que depois de anos a venderem o “não” para manter preso o voto moderado, foram direitinhos ao “sim”, assim que se viram no conforto do poleiro. Esperei ainda por uma enchente da esquerda, manifestando-se rua abaixo e rua acima, contra este verdadeiro atentado aos direitos dos portugueses e à nossa tradição de saber integrar e valorizar quem se junta à nossa portugalidade.

Nada. O país está adormecido. Tem medo. Toda a gente tem um vizinho que é do tal partido. E se falar muito alto, ainda corre o risco de ir para a lista. Os partidos da oposição estão atolados. Moções de confiança interna sem sentido. Viragens ao centro, sem travão de mão, que só acabará na direita. Crescimentos ténues que correm o risco de desmoronar por falta de coesão. E um pilar antigo, esvaziado, que permanece imutável, mesmo quando o mundo segue em frente. Não há maneira de combater isto? Estaremos destinados a cair ainda mais fundo?

No fim de semana de 12 e 13 de julho, entrou em cena um grupo de neonazis, devidamente armado, para instaurar o caos em Espanha. Nas ruas de Torre Pacheco, zona de Múrcia, os meliantes perseguiram sistematicamente uma comunidade inteira de pessoas que falavam uma língua diferente, alegando defender a soberania do seu Estado. Para além do ridículo de se ser nacionalista num país tão partido aos bocados como é o caso de Espanha, a situação ganha particular gravidade quando se passa de um exemplo para todos. Alegadamente, falou-se em violência de um grupo de imigrantes contra um cidadão espanhol que já veio a público lamentar o aproveitamento, por parte da extrema-direita, a solução tem que passar pelas autoridades locais e pela aplicação da lei por igual. Não por um grupo de racistas de cara tapada. Mas agora vale tudo, não é?

Essa gente não se recordará da história que nunca leu. Ditadores do século passado contaram com grupos deste género para espalhar a discórdia, dividindo para reinar. Depois, tornam-se incómodos. Porque são, na sua maioria, profundamente limitados a nível empático e intelectual. Por isso, acabam saneados, com facas longas espetadas nas suas brancas barrigas inchadas pela suástica. Um dia, os que correram em Espanha, nos Estados Unidos e em muitos outros lugares do mundo, vão acabar assim. Na valeta, esquecidos por quem quiseram idolatrar.

E nós, que agora demos mais um passo na direção de Trump, será que vamos ser mais salazaristas que Salazar? A coligação de Melo e Montenegro assumiu-se, finalmente, sem pudor. Foi um grande linguado no coração da assembleia e da democracia, com todo o afeto que se esperava entre bancadas irmãs. Passamos a ser vergonha internacional, ao nível da nacionalidade e do acolhimento. Enterraram os brandos costumes. Agora, que Portugal já não tem tempo para ser meigo, o que é que acontece? Vamos para a rua, ou vão tatuar a xenofobia da coligação na pele? Agora não dá para se ser neutro, caras e caros leitores. Ou vocês são, ou não são. Habituem-se.

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