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Imaginem uma madrugada, com o sol a nascer avermelhado, manchando as nuvens ténues que habitualmente decoram o nosso céu insular. Um alvorecer por cima da cidade de Angra do Heroísmo, junto à sua baía centenária, onde repousa património e identidade mundial. Pela estrada à beira-mar caminha uma jornalista, que fala com os seus botões, enquanto o colega e operador de câmara a acompanha, filmando os passos e a preparação para mais uma reportagem. Vai contar-nos mais um segredo do poder. Prepara-se para falar de empresas, empresários, consanguinidades e escândalos.

Do alto do Monte Brasil ecoa um disparo. Os patos bravos que repousam nas águas turvas da baía levantam voo. O silêncio da alvorada angrense é quebrado apenas pelo baque leve do corpo da jornalista, que escorre o seu sangue, suor e lágrimas, nas pedras da cidade património mundial. Morreu a fazer o seu trabalho. E a polémica lançada desapareceu. Do colega, nem uma palavra se ouviu, nos dias que se seguiram. Diz-nos a sabedoria popular que quem cala, consente. Morreu mais um momento de jornalismo.

Assim vai o nosso mundo. Na altura em que vos escrevo estas linhas, tomamos conhecimento de mais de quatro dezenas de episódios ocorridos nos Estados Unidos, nos últimos dias, referentes a ataques diretos a jornalistas que se limitam a cobrir os protestos em curso. O tirano, ladeado pelos seguranças e pelas guerras que ajudou a criar e a promover, não se preocupa com a liberdade, muito menos com a expressão.

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O séquito de Donald ocupa uma boa parte do seu tempo no ataque direto aos jornalistas. Graças às ações diretas e indiretas do novo partido fascista americano, muitas pessoas foram já despedidas e outras limitaram-se a sair de cena, com medo ou por princípio. Centenas de artigos que se perderam. Dezenas de programas de televisão que desaparecem. E as linhas editorias, vítimas da verdadeira teoria da grande substituição, dão lugar ao discurso uniforme do líder e do seu culto.

O exemplo vem de cima. Do topo da sala de imprensa da Casa Branca, encontra-se uma miúda com um feitio tenaz, com vinte e sete anos e um discurso viperino, a porta-voz do imperador americano que ataca violentamente as jornalistas e os repórteres que procuram a verdade. Gradualmente, foram sendo empurrados para fora do espaço de liberdade, dando lugar a um conjunto de influenciadores imbecis, que lá vão perguntar pela comida favorita do presidente, e coisas que tal.

Nas ruas, enquanto centenas de milhares de cidadãos, pensadores livres e resistentes, marcham em busca de um mundo melhor, o falso rei gastou milhões e milhões de dólares numa ridícula parada militar, que envergonhou qualquer ditadura de terceiro mundo. Entretanto, os secretários do estado fazem malabarismo para justificar a entrada de militares em ação, contra protestos maioritariamente pacíficos, relacionados com a empatia e a igualdade. A informação que nos vai chegando, graças às muitas fugas dos cobardes que se rebaixam àquela administração, remete para uma vingança sanguinária de um dos ideólogos do trumpismo.

Stephen Miller, uma espécie de Sebastião Bugalho de Trump (que, pelas palavras do próprio, será também uma comparação com Joseph Goebbels), terá crescido num ambiente propício à diversidade e não soube lidar com o mesmo. O ódio que nutre pelos latino-americanos é de tal forma visceral que terá sido ele a obrigar as forças de segurança responsáveis pela deportação de pessoas, incitando a que aumentem os números de prisões ilegais e reencaminhamentos de crianças e adultos para prisões de alta segurança, sem terem cometido qualquer tipo de crime grave. Forçadas a incrementar esforços, as tropas dirigiram-se a centros de procura de trabalho e outras coisas que tal. E a população, ao assistir a amizades de décadas serem presas no meio da rua, revoltou-se. De uma forma geral, pacificamente, há que ser dito.

No meio de tanta insurreição, protesto e marcha pela liberdade, surgem as tropas de choque. Militares, supostamente bem treinados. Balas de borracha. Gás pimenta. Cavalos e cassetetes. Metralhadoras penduradas, prontas a entrar em ação. Carros que aceleram em direção às multidões. Pessoas que saem algemadas. Pessoas em risco de vida.

O jornalismo anda lá pelo meio. Filmam o caos propositadamente criado. Procuram denunciar uma operação preparada para levar a população a cometer excessos que sejam depois vítimas de respostas fatais. Fazem o fundamental trabalho de denunciar abusos. E, por tudo isso, e pelo exemplo que vem da Casa Branca, são alvejados.

Sim, há imensas provas de que as forças de segurança no terreno, que combatem protestos pacíficos e incitam à violência, alvejaram jornalistas. Há dezenas de lesões, e há até casos gravados de disparos diretos. Uma jornalista australiana viu-se confrontada com um tiro de uma bala de borracha numa perna enquanto falava com os colegas de redação, ao vivo. A liberdade morreu no silêncio de quem não criticou esse ato.

Por cá, os disparos que ecoam na baía de Angra do Heroísmo ainda são metafóricos. Mas sabemos que já vão acontecendo. Há pessoas que trabalham na área do jornalismo de investigação que se vão vendo forçadas a recuar na sua ação. Gente que almeja apenas denunciar o caos que se instalou no nosso sistema, mas vê-se confrontada com ameaças e putativos processos-crime. Mesmo que ganhem em tribunal, o trabalho de amordaçamento fica concluído. Eis o fascismo a instalar-se. Na América. Nos Açores.

Cá, como lá, importa abraçar quem faz jornalismo. E pedir-lhes que continuem. Contra balas de borracha e gorgolejantes gestos de censura. Estamos aqui, ao vosso lado. Pela liberdade, sempre.

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