Sangue e Honra é o nome de um filme relativamente desconhecido, de 2011, que foi feito com o propósito de recontar uma história real, relativa à conquista de liberdades por parte dos cidadãos ingleses, numa altura de monarquias que caminhavam para o Absoluto. A crítica, em geral, considera o filme bastante fraco, adaptando com fragilidade a componente histórica do argumento, e focando-se antes em sequências de ação repletas de sangue e violência gratuita. Sangue e Honra foi também um dos lemas da venenosa juventude hitleriana, padroeira da tal violência gratuita, dando origem a uma organização de cariz mundial que continua a seguir os propósitos fundacionais do neonazismo.
Quando lerem estas linhas, já uma boa parte das pessoas saberá de quem falo. No passado dia 10 de junho, ao cair da noite, um grupo de atores da companhia A Barraca foi violentamente acossado por elementos do capítulo português de Sangue e Honra, em campanha sangrenta pelas ruas de Lisboa. Tudo indica que não foi um ataque concertado, mas apenas consequência de os lobos terem sido deixados à solta, num país que considera um partido de cariz fascista como o segundo mais relevante nas suas eleições nacionais, em vez de o declarar inconstitucional, como é.
A principal consequência desse ataque foi uma lesão relativamente grave, provocada a um ator que nada de mal tinha feito. Mas há uma consequência subjacente, mais nefasta,mais evidente, se nos dermos ao trabalho de ler o enorme manancial de linhas que se foram escrevendo em praça pública desde então.
A consciência de um país não se mede nas urnas. Nunca assim o foi, e muito menos poderia ser, quando a grande maioria absoluta que governa Portugal, há décadas, é a abstenção. A consciência de um país mede-se na sua resposta a momentos de tensão social, de crise e emergência. Durante o reinado de Passos Coelho, quando o mesmo procurava recuperar o absolutismo de outras eras, Portugal saiu à rua, em grupo e de braço dado. Manifestações intermináveis que calcorrearam a nação, obrigando o senador a reconhecer que ali não teria lugar como imperador. Eram outros tempos. Anos volvidos, a catástrofe que se seguiu ao passismo foi o covidismo. Com a pandemia instalada, e vivendo já num país totalmente diferente, muito mais americanizado e agarrado às máquinas, Portugal revoltou-se e construiu um novo exército de chalupas. Contra a ciência socialista, adversários de um Papa marxista, inimigos da democracia corrupta, prontos a servir o primeiro líder forte que os fosse capaz de agregar. Essa foi a consciência do novo país que acordou para a realidade do atentado cometido contra Adérito Lopes.
Para uma boa parte das portuguesas e dos portugueses, o ataque dos neonazis de Sangue e Honra não aconteceu, ou se aconteceu foi encenado, ou mesmo merecido. Para uma considerável fatia da nossa população, não foi nada de especial, sendo apenas reflexo de um ódio latente contra a subsidio dependência dos agentes culturais. Também assistimos a essa realidade nos nossos Açores, com a Secretaria responsável a insistir em comunicados que escondem verdades com esculturas frágeis de números que não representam pagamentos, mas apenas intenções.
O ataque dos neonazis de Sangue e Honra aconteceu pelo ódio e pela impunidade. De um primeiro-ministro que não os condenou adequadamente. De um governo que retirou o capítulo do relatório sobre segurança interna que mencionava aqueles grupos de extrema-direita. De uma coligação do PSD e do CDS que procura agradar ao eleitorado do primo André Ventura, e por isso tem medo de dizer ao que vem. A falta de vergonha de portuguesas e portugueses que votam naquela violência e que não se importam de olhar para uma poça de sangue e encontrar nela o reflexo da sua cara.
O ataque de Sangue e Honra podia bem ter sido um movimento concertado dos 1143. Podia ser uma marcha organizada dos camisas negras do Habeas Corpus. Ou podia apenas ser um comício de camisas castanhas, encabeçado por engravatados de azul-escuro, mas flanqueado por seguranças de semblante carregado, preparados para nos esbofetear ao menor movimento democrático. Num partido onde o único calcanhar de Aquiles é um copo de água e um golpe de azia, não se esqueçam.
Portugal está à beira do precipício. Os partidos do arco da democracia parecem desgovernados. A abstenção, que ainda manda no país, poderá estar irrecuperável. O ataque de neonazis nas nossas ruas é sintomático de um povo descalço, que não sabe que está prestes a cair.
Organizem-se. Protestem. Gritem. Falem com os vossos e com os vizinhos com quem nunca trocaram palavras. Não tenham medo de bater o pé. A paz é uma arma tão ou mais forte que a violência. Basta saber usá-la. Se, não há tanto tempo, conseguimos derrubar Passos e os seus lacaios, será agora preciso fazer cair os seus filhos simbólicos,André e Luís.
Antes que seja tarde, e acabemos na cama do hospital a ler comentários ofensivos sobre o nosso simples ato de resistência que foi respirar.
Um abraço ao Adérito e à Maria do Céu. A toda A Barraca. Continuamos aqui. Ainda não é o fim do mundo. É apenas um pouco tarde, mas já se percebeu que a luta e a resistência terão de ser feitas nas ruas. Portugal continental, Açores e Madeira uniram-se, hoje, em manifestações pela Cultura como forma de desconstruir o fascismo que perdeu a vergonha.