Conta-nos a narrativa bíblica o famoso episódio da Negação de Pedro, quando o apóstolo e futuro Papa da igreja de Deus terá dito que não conhecia Jesus Cristo, três vezes, ao longo da fatídica noite em que o profeta foi traído e aprisionado. Tanta vez terá Pedro dito que não, que acabou a chorar no amanhecer do dia seguinte, profundamente arrependido pela sua falta de espinha dorsal.

Assim vai a Direita em Portugal. Vivemos o rescaldo de um processo eleitoral histórico, já aqui por mim analisado de forma sumária, e amplamente discutido nas ruas, nas televisões e nos salões da alta nobreza empresarial. Nos dias que se seguiram, a política continuou ligada à Bíblia, de certa forma. É que, para além do arrependimento de Montenegro e Rocha, também houve a peregrinação de André Ventura ao túmulo de Josemaría Escrivá de Balaguer, fundador da Opus Dei. Se não havia grandes dúvidas acerca da ligação de alguns colegas do gangue àquela sociedade secreta, ficamos agora com a certeza de que o querido líder é, pelo menos, simpatizante do cilício. Que ele prefere a opressão ao Papa, já o sabíamos.

Mas, voltando à negação e ao arrependimento da Direita, o que acontece pelos dias que correm é um processo revolucionário em curso, com um potencial destrutivo evidente e, aparentemente, inevitável. D. Luís de Spinumviva enviou os seus correligionários aos jornais e programas de comentário político para rapidamente normalizar a ideia de se recuar no famoso “não é não”, porque estava na altura de aceitar um partido com manifesto político salazarista como parceiro viável para uma revisão constitucional. O conselheiro Rocha, liberal entre liberais, prepara-se para ir mais longe e vender a alma aos “mileis” que lhe deram espaço. Pelo que se vai sabendo, o objetivo é baixar salários mínimos, limitar direitos, aumentar deveres e começar o caminho para a privatização total.

A revisão constitucional está aí. Nesta semana que vos escrevo, em que a instauração da ditadura faz 99 anos, Portugal está de joelhos, rendido às evidências. O povo, ainda que não na sua maioria, porque a abstenção permanece expressiva, parece querer muito um governo de extrema-direita. Passamos de Salazar como o melhor português, para um comentador de futebol que escreveu uns romances baratos, de cordel e ganhou a vida a ajudar empresários a fazer malabarismos financeiros. Até nisso, temos baixado alguma qualidade. Será uma espécie de ditador da Temu que se avizinha?

Por cá, sabemos com o que contar. As açorianas e os açorianos estão rendidos à seita, não se tendo manifestado de forma substancial, mesmo quando votaram para eleger o senhor da legislação do glifosato, e quem vai para Lisboa afinal é a número três. Mesmo não sendo o único partido a alterar a ordem da lista, acaba por ser contraditório à lógica do “somos antissistema”, quando na prática o que fizeram foi, em praça pública, humilhar a sra. Deputada que sobe dois lugares na lista e assume o cargo, denominando-a de “inexperiente”, como argumento para não ter assumido o primeiro lugar.

As pessoas que se afirmam de direita democrática começam a sentir o peso da consciência. Praticamente todos os dias há uma novidade delirante, afinal de contas. Votaram na AD ou na IL, ou no PPM ou lá o que foi. Mas agora vão levar é com o Ventura e com, pelo menos, 23 deputados eleitos que já tiveram problemas com a justiça.

São tempos de perpetuar reflexões que já deviam ter sido feitas há anos e reestruturar partidos que já se deviam ter refundado há demasiado tempo. Pelo caminho, procuram-se culpas em vez de soluções. Das sombras, surgem cada vez mais personalidades que pensávamos decentes, ou esquecidas pelo tempo. Os canais de jornaleiros, que nunca param, vão construindo palcos cada vez mais altos para colocar os ativistas, comentadores e representantes de um partido que quer destruir a liberdade de imprensa. Homens e mulheres que em tempos acreditamos serem bons profissionais, imparciais e defensores da justiça, rebaixam-se à vergonha de conduzir entrevistas cor-de-rosa, onde Ventura e o seu séquito de estimação recebe o tratamento da nova realeza portuguesa, com certeza. Pelas contas feitas, André foi convidado especial dessa gente mais 108% que qualquer outro líder partidário, nos últimos doze meses.

Um dos casos mais gritantes, que foi também capitalizado pela extrema-direita, mas que partiu de uma mulher que, ao que tudo indica, é apenas de extrema falta de noção, foi o de Isabel Jonet. Para os mais distraídos, refiro-me à pessoa que, infelizmente, ainda é Presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, estrutura que foi fundada com boas intenções e mérito, mas que está totalmente controlada por uma ideologia tóxica, que domina a nossa sociedade.

O Banco Alimentar é, pela sua própria existência, um mecanismo de caridadezinha, que está lá para calcar os mais necessitados e perpetuar as suas carências. É uma instituição que tem sido aproveitada, por alguma burguesia de fracos morais, no sentido de ter um palco e um desconto social, sem fazer significativa diferença. Não me refiro às voluntárias e aos voluntários, cujo trabalho enalteço, pelo suor que lá deixam, em nome de uma causa que acreditam ser boa. Refiro-me a pessoas como Isabel, que recentemente disse acreditar ser necessário colocar as pessoas que recebem RSI a trabalhar para ter essa prerrogativa. O que a senhora Jonet não disse, mas ficou subentendido, é que acredita nas conversas de tasca do Ventura, dos que não querem trabalhar, e que estão apenas a mamar na teta do Estado. Defende essa mulher, supostamente educada e bem formada, uma visão que está mais que desprovida de qualquer fundo de verdade. E continuou a fazê-lo, tal como com outras polémicas suas do passado, mesmo quando confrontada com a realidade.

Isabel Jonet, comentadores da nossa praça, pessoas, em geral, que estão a contribuir para isto tudo, precisam de revisitar a sua fome de conhecimento, certamente. Talvez seja tempo de um banco alimentar para combater a pobreza de espírito.

Quanto aos demais, a culpa não pode morrer solteira nas fileiras dos nossos partidos democráticos. Ou tomam decisões, ou morrerão ajoelhados junto ao trono de Ventura. Não é tempo de reflexão. É tempo de ação. O fascismo não se combate com ponderações eternas. Se queremos passar o centenário do 28 de maio em Liberdade, precisamos de ser melhores.

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