O psiquiatra João Mendes Coelho alertou hoje para a necessidade de a lei da droga ser atualizada num regime “quase de via verde” em Portugal, alegando que a criminalização de novas substâncias tem de ser mais rápida.
“A lei da droga tem de ser atualizada num regime quase de via verde. Não podemos esperar pela União Europeia”, afirmou João Mendes Coelho, num colóquio sobre dependências em Angra do Heroísmo, nos Açores.
Segundo o psiquiatra, especialista nesta área, em 2016 mais de 90% das novas substâncias psicoativas detetadas em Portugal eram apreendidas nos Açores e na Madeira, mas a atualização da lei da droga que permitiu a criminalização do tráfico de parte destas substâncias só entrou em vigor em maio de 2021.
“A certa altura isto era um problema dos Açores e da Madeira, não era um problema de Portugal, nem de mais nenhuma região europeia. Se nós temos essa informação e se é um problema significativo, temos de o fazer mostrar na nossa Assembleia regional, na Assembleia da República, tem de ser lei em Portugal. Se a Europa nos acompanhar, tanto melhor, mas tem de ser feito”, alertou.
No verão de 2024, foram detetadas três novas substâncias na ilha de São Miguel, mas o processo de criminalização revelou-se difícil.
“Fez-se um relatório do ponto de vista da Polícia Judiciária, fez-se um relatório clínico e enviou-se para a Assembleia da República. Foi ignorado, porque tem de vir da Europa. A Europa pediu-nos, às mesmas pessoas, os mesmos relatórios, que só foram traduzidos para inglês, para isto ser passado para a lei europeia. Qual é o sentido disto”, questionou.
“Temos de perceber que há coisas que têm de ser feitas com rapidez, porque têm tempos próprios. Estamos desde setembro com o tráfico destas substâncias”, acrescentou.
Segundo João Mendes Coelho, “nunca houve tanta droga, nem tanto tráfico de estimulantes” como há hoje e, “sem tratamento farmacológico dirigido” às catinonas sintéticas, o combate é mais difícil.
“O problema nunca foi tão grave como na atualidade e, apesar da melhor resposta que está a ser dada, continuamos com uma disparidade muito significativa. Há uma necessidade evidente de coordenação. Eu sinto que a certa altura há uma resposta que não é sinérgica. Quase que há uma competição por dinheiros públicos para apoios para chegar a este tipo de população. Muitas vezes não está montada de forma coerente”, alertou.
As novas drogas detetadas desde o verão passado em São Miguel são mais agressivas e podem estar associadas a um aumento da criminalidade.
“Temos de facto – é essa impressão que eu tenho, se não estiver correta, admito, é empírica – mais violência e com isso maior criminalidade e um impacto social grande, sobretudo ao nível da população sem-abrigo […]. É muito difícil reabilitar e reinserir socialmente e do ponto de vista psicológico e psiquiátrico estes indivíduos”, apontou.
Segundo João Mendes Coelho, em 2022, um terço das mortes por suicídio registadas na ilha de São Miguel ocorreu em consumidores destas substâncias
“Temos taxas de suicídio bastante acima da média do país. Estariam de acordo com a média do país se não tivéssemos esta população”, referiu.
O psiquiatra defendeu a criação de salas de consumo assistido em São Miguel e o reforço da testagem, para detetar mais cedo as novas substâncias introduzidas na ilha.
“Apanhar os restos dos cigarros ou as pontas das seringas e estudar para saber o que é que está a ser consumido, não esperar pelas apreensões e ter logo mais rapidamente o que anda a ser consumido como informação”, explicou.
Para João Mendes Coelho é preciso apostar na prevenção, o que muitas vezes passa por desenvolvimento económico e humano e por um aumento dos níveis de literacia e escolaridade, mas também intervir na reabilitação e reinserção.
“Isso é particularmente difícil em São Miguel com um estabelecimento prisional do final do século XIX. Não há condições para isso”, alertou.
O psiquiatra apelou ainda à criação de comunidades terapêuticas nos Açores, para que os utentes se possam adaptar a viver na sua terra.
“Metade do trabalho das comunidades terapêuticas é reinserção social. Se um indivíduo tem um plano de vida de voltar aos Açores como é que faz reabilitação social em Coimbra, no Porto ou em Lisboa”, questionou.