O Governo Regional dos Açores, reunido a 4 de dezembro de 2024, deliberou a aprovação do Decreto Regulamentar Regional para o regime de apoios a conceder aos agentes culturais a trabalhar no arquipélago. Dias depois, a 11 do mesmo mês, a Assembleia onde imperam os partidos do mesmo executivo, deliberou a aprovação de uma proposta para voltar a permitir a utilização de glifosato em espaços públicos, na nossa Região. Pelo meio, o próprio presidente daquele parlamento desabafou, com voz a pender entre o amuo, a irritação e a enorme tristeza: “já nem sequer se pode votar nesta casa…”.
São três incidentes, aparentemente desconexos, mas que vão ao encontro de uma realidade comum. A Assembleia, conforme a conhecemos, e o Governo instituído pela mesma, deixaram de representar os Açores e as suas gentes.
Comecemos pela Cultura. O decreto que foi alegadamente aprovado, apesar de ainda não ser público, será um regulamento proposto e trabalhado internamente, que vai controlar e regimentar todo o trabalho do setor artístico no arquipélago, durante os próximos anos. Acontece que as diversas propostas que foram sendo colocadas em diálogo com os agentes culturais foram sistematicamente rejeitadas, por não cumprirem os requisitos básicos para a dignidade do setor. Já sabemos a desconsideração que a coligação tem pelos trabalhadores da cultura, bastando para tal repescar as palavras do deputado Machado, de há uns meses. Mas agora foram mais longe, e ignoraram a vontade da sociedade civil, avançando com um decreto que surge na revelia de tudo e todos.
Dúvidas houvesse, bastou ler alguns dos recentes manifestos de indignação publicados por personalidades ligadas à cultura insular. O que irradia do Palacete Silveira e Paulo, em Angra do Heroísmo, não é muito diferente do que emana dos Paços do Concelho, em Ponta Delgada. Os problemas continuam a acumular-se. Um regulamento é necessário. Mas tem de ser feito com as pessoas que o conhecem a contribuir para o efeito. Em vez disso, subsiste o regime autocrata e contrário a opiniões profissionais. Será mais uma lei, feita por burocratas, para burocrata ver, e aprovada sem o voto do povo? O tempo o dirá.
A que já está aprovada é a proposta do partido do deputado Pacheco para repescar produtos cancerígenos para junto das nossas vidas. Muitas pessoas pensam que é um exagero tratar determinados discursos de ódio como se fossem veneno. A vida real tende a superar a ficção. O tóxico, neste caso, vai muito para lá das palavras. Trata-se de uma limpeza de armazéns antigos, para venda de um stock interminável de um vírus que só vai dar lucro a quem apoia aquela ideologia de raiva.
O debate em torno do glifosato foi sintomático. Vasco Cordeiro procurou falar com calma e coerência, tentando ensinar os maus alunos. Em vão, correu contra os moinhos de vento, para demonstrar que havia que repensar tal assombrosa medida, antes que fosse tarde para todas e todos nós. Perdeu a batalha contra a irracionalidade, a mediocridade profissional e, pior do que tudo o resto, perdeu o seu tempo a discutir contra quem não sabe a diferença entre um pacote de Roundup da Bayer e uma garrafa de espumante tinto da Bairrada.
Enquanto duravam as intervenções sobre os químicos, escorria veneno de alguns assentos parlamentares e espalhava-se pelo soalho da democracia, fragilizando cada pessoa que ali tentava trabalhar. Os comentários e apartes cresciam em tom e baixavam em nível. A Assembleia estremecia como que abanada por uma força divina, gritando em vão, buscando deputadas e deputados capazes de acordar a tempo de dizer não.
A proposta foi aprovada. Os Açores recuaram anos na sua corrida ambiental, que já de si tinha começado com atraso. Uma recente petição pública veio demonstrar que, novamente, aquela não é a vontade do povo. É a vontade de um grupo de pessoas que, para se manterem ali, negociaram com a toxidade. Perdemos todos.
Assim o afirmou, indiretamente, o presidente da mesa daquela Assembleia. Ao longo dos últimos anos, Luís Garcia tem procurado acalmar os ventos venenosos que sopram ali dentro. Com alguns erros pelo caminho, demonstrou ter bom senso suficiente para não cair em algumas das armadilhas que lhe foram preparando. Mas neste último plenário de 2024, o presidente suspirou fundo. Incapaz de controlar a brincadeira no recreio. Impotente perante tanto tasqueiro aos berros.
As pessoas que assistiam terão sentido solidariedade com Luís Garcia. Estamos cansadas e cansados. Fartas e fartos. E não nos revemos ali. Falta mais cultura para ensinar as senhoras e os senhores do veneno. Falta mais dignidade. Falta muito mais do que temos.
2024 termina com um plenário desastroso a todos os níveis. Restará ao povo o ímpeto de demonstrar resiliência, assinar as petições, gritar que não se revê ali e não falhar o alvo, enganado por populistas. É urgente mudar para melhor.
Boas festas!