A taxa de risco de pobreza permanece a mais alta do país. Não vale a pena dizer que baixou em 2023, quando quase um quarto das pessoas que moram nos Açores continuam à beira da fome e da falência. Não vale de nada virem os políticos anunciar que estão a conseguir baixar os números, quando se fala em dormir ao relento, e quando ir às compras é contrair dívidas.
A pobreza, o risco da mesma, e as consequências nefastas para a nossa sociedade, são reflexo de décadas e mais décadas de ingerência, mas são também o resultado de uma estratégia de perpetuação das classes baixas. Ao populismo, interessa manter uma fatia da população no limiar da desgraça, para poder vender votos a troco de um apoio ao medicamento ou de uma redução ilusória da idade da reforma, que pode bem só chegar no dia de São Nunca, de tarde.
Recuemos ao começo do ano passado. O escritor Joel Neto anunciou uma obra que alertava para a realidade da pobreza insular. Jénifer, ou a princesa de França. Interessante novela sobre as consequências de se viver pobre, num bairro imaginário, que poderia ser um de muitos que preenchem a realidade do nosso arquipélago. Um encontro entre o olhar de uma classe média cada vez mais elitizada, e uma criança inocente, vítima de ter nascido na casa errada, que só queria ser feliz.
Existem muitos mais casos desses do que gostaríamos de imaginar. Joel também foi vítima de uma política sistémica, de se varrer os pobres para debaixodo tapete. Foi agastado por alguns ataques infelizes, mas aguentou-se e manteve a sua postura de denúncia da arruinada realidade de algumas partes das nossas belas ilhas.
Contra amigos e camaradas de outros tempos, sublinhe-se. Não muito diferente foi a recente atitude de Paulo Jorge Ribeiro, num artigo de opinião publicado no Diário Insular, e que não posso deixar de elogiar, por não baixar os braços contra o extremar do neoliberalismo económico e moral. É de neoliberalismo que falamos.
Mais de um ano depois de Jénifer, um relatório do Serviço Regional de Estatística dos Açores, remete para os tais 24.2%, de pessoas em risco de pobreza, anunciando que se baixou cerca de 2%, que é como quem diz que não se baixou quase nada, e que ainda estamos muito longe da média nacional. E mesmo essa média não é famosa, nem deve ser motivo de orgulho. Basta haver uma família em risco de pobreza, para ser demasiado. E isso, começa nos gabinetes de gestão.
Politicamente falando, o neoliberalismo é um cancro que se espalha entre as altas estruturas do poder, e impede que sejam tomadas posições verdadeiramente úteis para o desenvolvimento de uma sociedade igualitária. É a partir desses tumores que a
imoralidade se espalha à educação e à cultura, promovendo-se uma separação de classes, onde uns podem ter tudo, e outros não devem ter nada. Na saúde, essa distinção caminha para a sua construção, com a constante conversa de que precisamos de rever o sistema nacional. Pois precisamos! Precisamos de lhe dar condições para atender a todas as pessoas que precisam dele.
A pobreza é uma doença, daquelas que convém que não haja cura, para se poder continuar a vender medicação cara. Os partidos do arco da atual governação batem-se publicamente pelo apoio aos mais necessitados, mas depois reúnem à porta fechada com os grandes empresários, para organizar uma estratégia que mantenha uma boa parte das açorianas e dos açorianos amarrados a essa algema que é o mercado e a famosa mão invisível.
A coligação quer convencer o arquipélago com papas e bolos, mas os planos que afirmam preparar já deviam estar a ser aplicados e nem sequer são conhecidos. O que foi conhecido foi a sua postura perante os mais necessitados, votando a favor da tenebrosa medida do partido do senhor Ventura, para impedir que os mais pobres tenham acesso por igual à educação das suas crianças, construindo uma nova sociedade de classes, desde o nascimento, passando pela Creche, e até à prematura morte dos que vivem debaixo do risco dos tais 24.2%.
Não conheço a Jénifer, mas conheço demasiadas Jéniferes. Cresci numa ilha com problemas de igualdade económica e social. Cruzei-me com muitas outras realidades parecidas, em todas as ilhas dos nossos Açores. Vejo-a aumentar, com o cancro a espalhar-se entre nós. As gravatas que nos comandam assim o desejam. Mas não nos esquecemos de votar e de continuar a lutar, porque é preciso não esquecer o cântico negro, e saber que não é este o caminho pelo qual queremos ir.