A Constituição da República Portuguesa consagra no seu artigo 78.º o “Direito à fruição e criação cultural” como um direito fundamental. Esta disposição vai mais longe e diz mesmo que “1. Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural. 2. Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais: a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de acção cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio; b) Apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva, nas suas múltiplas formas e expressões, e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade;reflete a importância da cultura na formação da identidade nacional e na realização pessoal e coletiva dos cidadãos. No entanto, a concretização deste direito, na prática, tem sido objeto de um debate sobre a forma como as políticas culturais são implementadas no país, em particular na região.

Durante o Estado Novo, a cultura era vista como um instrumento de propaganda e controle ideológico, com o regime salazarista a fomentar uma visão autoritária e centralizada da produção e fruição cultural. A censura e a manipulação dos meios culturais eram comuns, e o acesso a formas culturais alternativas ou de contestação ao regime era severamente limitado.

Com a Revolução de 74 e o subsequente processo de democratização, a cultura emergiu como um espaço de liberdade e de renovação social. O Estado, numa tentativa de corrigir as desigualdades impostas pelo regime anterior, passou a adoptar políticas que visavam democratizar o acesso à cultura e incentivar a produção artística independente. Foram criadas instituições culturais públicas, e o subsídio financiamento – sobre a dicotomia subsídio/financiamento/apoio/investimento falaremos em momento oportuno – cultural tornou-se instrumento fundamental para o apoio à criação privada. Os agentes culturais, numa óptica capitalista, são “contratados” para realizar o que o Estado não consegue, assegurando assim o cumprimento do dever constitucional de garantir o acesso e a fruição da cultura a todos os cidadãos. Assim como acontece em outros sectores como a saúde, educação, onde o Estado financia o sector privado quando não consegue dar resposta.

A nível mundial, diversos estudos destacam o impacto económico crescente das Indústrias Culturais e Criativas (ICC). O relatório da UNESCO e EY, Cultural Times (2015), revelou que as ICC geram 2,25 biliões de dólares em receitas globais e empregam mais de 29,5 milhões de pessoas, representando 3% do PIB mundial. O Creative Economy Outlook (2018), da UNCTAD, sublinha o aumento do comércio de bens criativos, com países como a China a liderarem o mercado, e o Creative Economy Report (2013), da UNESCO e UNDP, ressalta o papel das ICC na inclusão social e no desenvolvimento sustentável. A WIPO (2019) aponta que a proteção da propriedade intelectual é essencial para maximizar o valor económico das ICC, enquanto o relatório da CISAC (2020) reforça o crescimento contínuo do setor, especialmente na criação de conteúdos protegidos por direitos autorais.

As indústrias culturais e criativas (ICC) têm um impacto económico crescente na Europa, representando cerca de 4,4% do PIB da União Europeia e empregando mais de 12 milhões de pessoas, segundo um estudo da Ernst & Young (2019). Relatórios da Comissão Europeia, como o “Mapping the Creative Value Chains” (2017), sublinham a importância das ICC na inovação e na revitalização de cidades, destacando o seu papel central na economia digital. Contudo, as ICC enfrentam desafios financeiros significativos, como apontado pelo “Creative Europe” (2021), apesar do seu potencial de crescimento e capacidade de promover diversidade cultural e inclusão social. Este setor não é apenas uma força motriz da economia, mas também um agente de transformação social e inovação.

Ainda o relatório Cultural and Creative Cities Monitor (2020), do Joint Research Centre da Comissão Europeia, avaliou o desempenho de mais de 190 cidades em 30 países, destacando a importância das indústrias culturais e criativas (ICC) na geração de empregos e no crescimento da economia local. As cidades com políticas robustas de apoio às ICC revelaram-se mais resilientes economicamente e atraentes para jovens talentos.

Nos Açores, pouco ou nada se tem estudado sobre o impacto económico dos agentes culturais, apesar de ser inegável que ele existe e se faz sentir. O sector cultural açoriano contribui para o turismo, a criação de emprego e o desenvolvimento das comunidades, mas a falta de dados concretos e estudos detalhados revela uma desvalorização estrutural por parte das entidades governamentais. O que já se sabe, mesmo sem análises aprofundadas, é que os agentes culturais desempenham um papel crucial, e a sua contribuição económica deveria ser reconhecida e integrada nas políticas regionais de desenvolvimento.

É lamentável que apenas o Governo Regional dos Açores insista em não reconhecer e valorizar devidamente os agentes culturais, ignorando o seu papel fundamental no desenvolvimento social e económico da região. Enquanto em diversas partes do mundo e até no continente se aposta nas indústrias culturais como motor de inovação e crescimento, nos Açores parece haver uma cegueira deliberada, certamente influenciada por um pensamento preconceituoso, que desvaloriza a cultura e a educação. Não é difícil perceber porque razão se continua a marginalizar o sector cultural: a cultura promove pensamento crítico e consciência social, algo a ser evitado a todo o custo nesta região.

Tal como os agricultores, pescadores e empresários desta região têm reivindicado, e gritado aos sete ventos, pelos pagamentos dos apoios, os agentes culturais têm também o direito a reclamar o que lhes é devido por lei. Têm enfrentado uma constante batalha contra um governo que não cumpre com as suas obrigações legais e financeiras. No caso da cultura, os processos de apoio e financiamento além de estarem regulados por decreto legislativo regional, são escrutinados por júris independentes. A questão levantada, no último plenário da Assembleia Regional dos Açores, sobre o atraso de pagamentos à cultura, foi a de que os apoios que são atribuídos, já publicados em jornal oficial, não são pagos. Não se compreende o histerismo de alguns parlamentares em vir falar de bugalhos quando estamos a falar de alhos. E mais uma vez pessoas não habilitadas querem impor modelos e visões pessoais, quando sabem que para o fazerem têm de utilizar um instrumento que está apenas e só ao seu alcance, a lei, com a chatice democrática de terem de ter uma maioria que aprove a sua visão.

A cultura não é um reduto de direita nem de esquerda, é um direito fundamental plasmado na nossa constituição. E a lei é para cumprir, por todos, sem excepção.

Os agentes culturais açorianos têm vindo a profissionalizar-se cada vez mais, tornando-se parceiros de excelência, dos governos e dos municípios, no desenvolvimento da cultura regional. Estes profissionais investiram anos e recursos significativos na sua formação académica, acumulando conhecimento e experiência essenciais para a valorização do património cultural dos Açores.

Não se pode falar de um modelo cultural nos Açores, porque o que temos, em primeira instância, é a ausência de uma política cultural estruturada e orientada para a valorização das competências e da criatividade que impede o crescimento sustentável deste, e de qualquer, sector. Enquanto este governo continuar a manipular a realidade e a tratar a cultura como bode expiatório dos maus resultados políticos e como uma área secundária e desvalorizada, continuaremos a ficar para trás no panorama europeu e mundial – tal como a nossa agricultura, tal como a nossa educação, tal como as nossas pescas, tal como todos os outros sectores.

Os agentes culturais estão atentos. Educados e conscientes dos seus direitos, não se deixam manipular e instrumentalizar por aqueles que procuram nivelar por baixo o debate sério. Os agentes culturais desta região, que valem menos de 1% do orçamento regional, estão determinados a resistir e a defender a dignidade e o valor do seu trabalho.

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