Alexandra Manes

Na madrugada de 11 de setembro, as televisões transmitiram o rescaldo de um debate que ficará certamente na história contemporânea do mundo. Donald Trump e Kamala Harris enfrentaram-se pela primeira, e, possivelmente, última vez, na atual campanha eleitoral. A candidata desarmou o adversário com calma, serenidade e com um mero aperto de mão, antes sequer de começar a falar. Ele, por sua vez, revelou desespero, insegurança e assentou a sua narrativa nos pilares da extrema-direita que coordena naquele país.

Quem me lê poderá perguntar o motivo de se estar a discutir um debate internacional, referente a um país que não nos diz respeito. Engane-se a pessoa que ignorar os Estados Unidos. Foi graças à primeira eleição de Trump que a bola de neve do novo totalitarismo se veio espalhar pelo mundo, como um vírus empreendedor, capaz de dominar os restos de democracia que ainda por cá andam.

O debate foi um novo momento de tensão entre a democracia, mesmo que a americana esteja pejada de hipocrisias, e o controlo ditatorial, que os seguidores de Donald tanto desejam.

Ao recordar aquele debate, recordo também o momento que já se tornou viral, referente a uma das maiores mentiras pronunciadas por uma pessoa que já de si é mentirosa compulsiva: Trump afirmou que no estado de Ohio, tinha conhecimento de imigrantes que comiam cães e gatos dos vizinhos. Segundos depois, foi o próprio moderador do debate a anunciar que o que fora dito pelo antigo presidente não tinha qualquer veracidade. Apanhado na sua própria incapacidade, Trump limitou-se a balbuciar que tinha visto na televisão, o que, novamente, era mentira.

A extrema-direita trumpista, que agora vive aqui entre nós, já nos habituou a estas coisas. Mentiras, meias-verdades, invenções racistas, xenófobas, machistas e homofóbicas, capazes de fazer corar qualquer pessoa decente.

Mas a verdade é que Trump conta com cerca de metade do eleitorado americano do seu lado, e isso não terá mudado, mesmo que as suas falsidades tenham sido, uma vez mais, publicamente expostas.

Kamala limitou-se a sorrir, e a mostrar um semblante preocupado com a saúde mental do seu adversário. Mas não sei se terá ganho muitos votos com tudo isso. Esse fenómeno é que é verdadeiramente preocupante. O mundo mudou, em anos recentes. As pessoas acreditam cegamente no que querem acreditar, mesmo que confrontadas com um chorrilho de factos que demonstram os seus erros.

Há quem jure pela saúde dos seus entes queridos que a terra é garantidamente plana, e que há uma conspiração para o esconder. Há quem queira defender civilizações antigas, dominadas por extraterrestres, alunagens criadas em estúdios de cinema, ou falsas narrativas sobre atentados terroristas e tiroteios nas escolas americanas. Há quem cuspa nas vacinas que salvam incontáveis vidas. Há quem sinta ondas radioativas emanadas pelos malditos 5G e desacredite as alterações climáticas.

E há quem nos queira vender que vivemos numa sociedade de malandros indisciplinados que almejam apenas um subsídio e uma dependência de um Estado imoral. Foi isto que um empresário e deputado do partido de Ventura e Pacheco, nos trouxe num recente artigo de opinião publicado no Diário Insular, a 5 de setembro do corrente.

Numa imitação quase perfeita do espírito de Donald Trump, o sr. deputado afirmou que vivemos num tempo em que ninguém quer trabalhar. Falou da vergonha que sentia ao não conseguir arranjar pessoas para labutar aos fins de semana, ou fazer horas extraordinárias. Ele, que é chefe em nome próprio, e que conta com um negócio vasto, queixou-se do mito da falta de mão-de-obra, utilizou argumentos que me leva rama campos de concentração alemães, e culminou toda a sua retórica com uma citação de Agostinho da Silva, que chamou erradamente de Artur Agostinho, tendo-o apelidado de perigoso esquerdista.

A mentira é a arma da extrema-direita. Dos Estados Unidos para a ilha Terceira, não há dúvidas que é tudo farinha do mesmo saco. São eles próprios que o dizem, aliás, continuando a apoiar personalidades inefáveis, como Elon Musk.

Os argumentos do sr. deputado está assente numa tese que é replicada por alguns senhores empresários, cá como lá. Acham que as pessoas não querem trabalhar, quando na verdade o que as pessoas querem é condições para poderem fazer o seu trabalho com dignidade. Jovens que voltam a casa dos pais por não conseguirem pagar as compras do mês, não querem continuar a ganhar um ordenado que é menor do que o patrão ganha numa semana. Quem é que no seu perfeito juízo se irá disponibilizar para trabalhar ao fim de semana, e chegar ao final do mês sem dinheiro suficiente para comprar uma garrafa de azeite?

No entanto, há decisores políticos que parecem ignorar essas verdades básicas e apela antes à retórica barata do populismo azedo que o seu partido já nos habituou. Toma o exemplo de Trump e dos seus congéneres para lançar mais uma sombra sobre as classes mais pobres, redobrando o interesse em defender o patronato, nas figuras dos grandes senhores do poder financeiro, que controlam André Ventura e a sua equipa.

Seja nos Estados Unidos, na ilha Terceira ou em qualquer outro lado, a extrema-direita já nos disse ao que vem. Vem para mentir, para abusar e para espalhar o caos. É preciso continuar a desmentir as suas afirmações, como o moderador do debate fez com Donald. A mentira não pode passar.

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