Alexandra Manes

Em 1996, Herman José foi alvo de uma perniciosa tentativa de saneamento do seu sentido de humor. Em causa estava um episódio da mítica rúbrica Herman Zap, de sábado à noite, onde foi transmitida uma versão cómica de A Última Ceia da Bíblia. Com o seu caraterístico sentido de sátira, bem acompanhado pela fina linha humorística do seu grupo de guionistas, Herman apresentou ao país de há vinte e oito anos um olhar cheio de boa disposição sobre o que teria sido um evento de destaque
na narrativa da religião vigente.

Naquele tempo, o PSD era pastoreado por um senhor chamado Marcelo Rebelo de Sousa, cujo nome de certeza que é do conhecimento de quem me lê.

A igreja católica detinha um peso considerável junto da opinião pública portuguesa. As reações foram imediatas. O episcopado avançou com duras frases sobre os limites do humor. Não se deveria brincar com o sagrado, disseram os representantes religiosos. E Marcelo juntou-se a eles, afirmando que era com muita preocupação que assistia à transmissão de conteúdos daquele género.

Depreendia-se que, para a Sé e para o senhor futuro presidente, a RTP só serve para passar lições para donas de casa, missas de sábado de manhã, jogos de domingo à noite e novelas durante a semana. Depreende-se que muito pouco mudou, de 1996 para cá.

A cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos em Paris foi alvo de uma forte polémica. Alguns bispos católicos de França juntaram-se às vozes de ateus e protestantes, provenientes de Moscovo, e às forças anglicanas do Egipto. Pela primeira vez, em sabemos lá quantos anos, alguma coisa conseguiu unir as diferentes fações do cristianismo: o ódio.

É que o evento em questão contou com um momento de recreação histórica. Quem percebe do assunto divide a sua opinião entre o facto de ter sido uma paródia de A Última Ceia, de Leonardo Da Vinci, ou uma reinvenção da obra O Festim dos Deuses, de Van Bijlert. A recreação foi feita por artistas Drag, numa clara alusão à principal temática das Olimpíadas de Paris: a inclusão.

Da inclusão ao ódio foi só um saltinho. No mesmo dia, multiplicaram-se os ataques cerrados de extremistas religiosos, cegos pela presença de pessoas que atentavam contra um falso pudor por simplesmente existirem. O bonito momento, que foi muito bem traçado pelos olhos do diretor artístico, desvirtuou-se e perdeu-se na podridão de comentários, vindos de forças religiosas, mas também, e principalmente, das forças da direita.

Sobre a religião, não será demais relembrar que no dia 14 de junho o Papa Francisco esteve reunido com mais de uma centena de humoristas, onde se discutiu a liberdade de interpretar, brincar e reinventar a religião e o próprio Deus aos olhos de quem o vê.

Só assim poderá a igreja modernizar o seu olhar e a sua presença. Ou desejarão alguns elementos da mesma regressar a um passado mais sombrio?

No âmbito político, sublinho que o chorrilho de comentários desrespeitosos, homofóbicos e preconceituosos vieram da direita, e não apenas da extrema-direita, porque em Portugal não serão poucas as pessoas do PSD que se juntaram aos colegas do partido de Ventura no ataque cerrado. Na Europa, foram as forças de Le Pen e Meloni, em França e na Itália, que deram o mote, unindo-se às já mencionadas variantes cristãs que se congregaram num concílio contra o demónio da inclusão.

Bolsonaristas e Trumpistas rapidamente acorreram a juntar-se à festa. Paris assumiu-se palco de um momento de surrealismo do século XXI, digno de tempos que já não se deviam ver, mas que voltaram a ferro e fogo. Tal como Marcelo, há vinte e oito anos, juntou as suas vozes às vozes da igreja conservadora, também o PSD de agora não se coibiu de dar a mão aos deputados do aliado Ventura. Enquanto Rita Matias escrevia nas suas redes sociais, mentindo descaradamente, e gritando aos sete ventos que o que se passou em Paris era obra do Diabo, o PSD não afirmou coisas muito diferentes das dela.

Marcelo ainda por cá anda. Não sabemos o que ele pensou desta nova e hipotética Última Ceia, mas a julgar pelo que se passou em 1996, não será difícil chegar lá. Por isso continuo a dizer que o PSD de agora não se extremou assim tanto, e sempre manteve esses pilares bafientos, de tempos antigos, quando o Cardeal Cerejeira mandava tanto quanto um outro Marcelo. Tempos que alguns desejam que regressem.

Por aqui, continuar-se-á a apoiar pessoas como o diretor artístico da cena em questão, que de polémica só teve aquilo que os odiosos de serviço quiseram. Bem-haja Thomas Jolly. Bem-haja Paris. Foi uma lufada de ar fresco, nos dias abafados que correm.

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