Em 1996, Herman José foi alvo de uma perniciosa tentativa de saneamento do seu sentido de humor. Em causa estava um episódio da mítica rúbrica Herman Zap, de sábado à noite, onde foi transmitida uma versão cómica de A Última Ceia da Bíblia. Com o seu caraterístico sentido de sátira, bem acompanhado pela fina linha humorística do seu grupo de guionistas, Herman apresentou ao país de há vinte e oito anos um olhar cheio de boa disposição sobre o que teria sido um evento de destaque
na narrativa da religião vigente.
Naquele tempo, o PSD era pastoreado por um senhor chamado Marcelo Rebelo de Sousa, cujo nome de certeza que é do conhecimento de quem me lê.
A igreja católica detinha um peso considerável junto da opinião pública portuguesa. As reações foram imediatas. O episcopado avançou com duras frases sobre os limites do humor. Não se deveria brincar com o sagrado, disseram os representantes religiosos. E Marcelo juntou-se a eles, afirmando que era com muita preocupação que assistia à transmissão de conteúdos daquele género.
Depreendia-se que, para a Sé e para o senhor futuro presidente, a RTP só serve para passar lições para donas de casa, missas de sábado de manhã, jogos de domingo à noite e novelas durante a semana. Depreende-se que muito pouco mudou, de 1996 para cá.
A cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos em Paris foi alvo de uma forte polémica. Alguns bispos católicos de França juntaram-se às vozes de ateus e protestantes, provenientes de Moscovo, e às forças anglicanas do Egipto. Pela primeira vez, em sabemos lá quantos anos, alguma coisa conseguiu unir as diferentes fações do cristianismo: o ódio.
É que o evento em questão contou com um momento de recreação histórica. Quem percebe do assunto divide a sua opinião entre o facto de ter sido uma paródia de A Última Ceia, de Leonardo Da Vinci, ou uma reinvenção da obra O Festim dos Deuses, de Van Bijlert. A recreação foi feita por artistas Drag, numa clara alusão à principal temática das Olimpíadas de Paris: a inclusão.
Da inclusão ao ódio foi só um saltinho. No mesmo dia, multiplicaram-se os ataques cerrados de extremistas religiosos, cegos pela presença de pessoas que atentavam contra um falso pudor por simplesmente existirem. O bonito momento, que foi muito bem traçado pelos olhos do diretor artístico, desvirtuou-se e perdeu-se na podridão de comentários, vindos de forças religiosas, mas também, e principalmente, das forças da direita.
Sobre a religião, não será demais relembrar que no dia 14 de junho o Papa Francisco esteve reunido com mais de uma centena de humoristas, onde se discutiu a liberdade de interpretar, brincar e reinventar a religião e o próprio Deus aos olhos de quem o vê.
Só assim poderá a igreja modernizar o seu olhar e a sua presença. Ou desejarão alguns elementos da mesma regressar a um passado mais sombrio?
No âmbito político, sublinho que o chorrilho de comentários desrespeitosos, homofóbicos e preconceituosos vieram da direita, e não apenas da extrema-direita, porque em Portugal não serão poucas as pessoas do PSD que se juntaram aos colegas do partido de Ventura no ataque cerrado. Na Europa, foram as forças de Le Pen e Meloni, em França e na Itália, que deram o mote, unindo-se às já mencionadas variantes cristãs que se congregaram num concílio contra o demónio da inclusão.
Bolsonaristas e Trumpistas rapidamente acorreram a juntar-se à festa. Paris assumiu-se palco de um momento de surrealismo do século XXI, digno de tempos que já não se deviam ver, mas que voltaram a ferro e fogo. Tal como Marcelo, há vinte e oito anos, juntou as suas vozes às vozes da igreja conservadora, também o PSD de agora não se coibiu de dar a mão aos deputados do aliado Ventura. Enquanto Rita Matias escrevia nas suas redes sociais, mentindo descaradamente, e gritando aos sete ventos que o que se passou em Paris era obra do Diabo, o PSD não afirmou coisas muito diferentes das dela.
Marcelo ainda por cá anda. Não sabemos o que ele pensou desta nova e hipotética Última Ceia, mas a julgar pelo que se passou em 1996, não será difícil chegar lá. Por isso continuo a dizer que o PSD de agora não se extremou assim tanto, e sempre manteve esses pilares bafientos, de tempos antigos, quando o Cardeal Cerejeira mandava tanto quanto um outro Marcelo. Tempos que alguns desejam que regressem.
Por aqui, continuar-se-á a apoiar pessoas como o diretor artístico da cena em questão, que de polémica só teve aquilo que os odiosos de serviço quiseram. Bem-haja Thomas Jolly. Bem-haja Paris. Foi uma lufada de ar fresco, nos dias abafados que correm.