O abandono escolar ainda faz parte da vida de muitas crianças açorianas, entre quem foge para jogar futebol ou troca os livros pelo trabalho, copiam-se percursos de insucesso e faltas consecutivas até o absentismo se tornar preocupante.
Iuri chegou a ter “a polícia à perna”, porque passava as tardes a fumar charros com um grupo pouco recomendável. Alexandra faltava diariamente às aulas e, quando ia, “respondia mal aos professores”. Erico começou a trabalhar na lavoura e depois numa pizzaria para ajudar nas contas em casa até que, um dia, desistiu de estudar.
Nenhum gostava da escola. Todos a abandonaram, mas foram encontrados por técnicos que lhes ofereceram um projeto alternativo. Aceitaram o desafio e escaparam às estatísticas que colocam os Açores como a segunda região da Europa com a maior taxa de abandono escolar precoce, só ultrapassada por uma região da Roménia, revelou à Lusa o sociólogo Fernando Diogo.
As vidas destes três jovens, de diferentes zonas da ilha de São Miguel, cruzaram-se na Perkursos, um projeto educativo que recebe anualmente cerca de 90 alunos entre os 14 e os 25 anos.
“A maioria já está em abandono escolar. Não conseguem estar na escola. Geralmente, faltaram a algumas aulas no 1.º período e no 2.º período já não apareceram. Ficaram pelos corredores, não foram um dia, não foram dois… até que deixam de ir”, conta à Lusa Mónica Bulcão, diretora técnica da escola.
Chegam sinalizados por várias entidades, desde escolas a comissões de menores, mas também tribunais e segurança social. As histórias de absentismo de Iuri, Alexandra e Erico também já estavam registadas nos processos na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ).
Iuri recorda que quando ia às aulas, sentava-se nas últimas carteiras e “achava piada ao professor não chatear”: “Podíamos fazer o que queríamos”, recordou. Mas nos testes, falhava.
Quando confrontados diariamente com “os maus resultados, os jovens tendem a desistir”, salientou o sociólogo e também investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais CICS-NOVA da Universidade dos Açores.
Foi o que aconteceu com Iuri. Começou a faltar aos 12 anos. Esquecia as obrigações escolares por um jogo de futebol ou um mergulho no mar, até nos dias “de inverno quando fazia sol”.
Em frente à escola, juntava-se um grupo com “alto som, a fumar” e Iuri acabou por trocar os colegas de turma pelo grupo do outro lado a rua. Aos 17 anos, voltou a chumbar por faltas no 8.º ano e percebeu que tinha de mudar.
Pairava sobre ele a ameaça de ser penalizado pela CPCJ. No limite, poderia ser retirado à família e até enviado para uma família de acolhimento do continente, contou à Lusa o diretor da Escola Básica Integrada de Rabo de Peixe, André Melo, onde há registos de alunos já enviados para Lisboa.
Em 2022, as CPCJ dos Açores receberam 433 comunicações de potenciais situações de perigo reportadas pelas escolas. Nesse ano, houve 353 denúncias por estar em causa o direito à educação e 278 casos de absentismo escolar.
O absentismo escolar e o insucesso terminam muitas vezes em abandono, alertou o sociólogo Fernando Diogo. Para combater o problema, o Governo regional anunciou, em maio, um plano para baixar de 21,7% para 15% o abandono escolar precoce até 2030.
Uma das medidas é identificar os alunos que desaparecem do sistema sem terminar o 12.º ano, disse a Secretária Regional de Educação.
Este ano, pela primeira vez, os serviços identificaram os que tinham deixado de estudar antes do tempo para lhes propor que “enveredassem por outros percursos de formação”, afirmou Sofia Ribeiro.
A Perkursos é um desses projetos. Esta é uma escola diferente. Há um estúdio de som, onde os alunos podem gravar músicas ou podcast, uma gigantesca sala para aulas de expressão dramática. Há um espaço ao ar livre, onde até podem fumar. Mas os alunos apontam como principal diferença a relação com os professores.
“Nem podemos dizer que são professores, porque os tratamos mais como amigos. Estão sempre com a gente, sempre disponíveis”, contou Iuri, que chegou à escola, fez “tudo direitinho e, numa semana, o processo foi arquivado”. No ano passado, terminou o 9.º ano e agora está empenhado em concluir o secundário.
No entanto, nem todos os casos são de sucesso, reconheceu Mónica Bulcão. Aqui, também há muito absentismo. “Eles já levaram muita pancada na vida por vários motivos e o primeiro trabalho é recuperá-los como pessoas”, sublinhou o psicólogo da escola.
Segundo João Pedro Nunes, na Perkursos trabalha-se para que acreditem que “vão conseguir fazer as contas e saber o inglês que precisarem para a sua vida”.
Para a professora Paula Medeiros, a quem coube, este ano, a tarefa de ensinar Matemática, muitas vezes o sucesso está apenas em ver os alunos entrar na sala: “Aqui é um refúgio, porque a própria família nem sempre é a ideal, nem sempre é aquele porto de abrigo que deveria ser”, sublinha.
Alexandra Garcia é um desses casos. Disse que a sua família “não é um exemplo a seguir”: “Nunca fomos muito unidos”, lamentou a rapariga de 19 anos que está agora a tentar terminar o 9.º ano.
“Desleixei-me por causa de assuntos em casa”, explicou, contando que começou a faltar aos 14 anos. Chegou a estudar Agropecuária num curso profissional, mas do 8.º para o 9.º ano o curso não abriu.
“Adoro aquela área. É uma paixão minha de anos sem fim mas eles fecharam-me esse caminho e voltei a cair, a rebaixar-me muito e a desmotivar-me”, recordou, contando que já foi acompanhada por “psicólogos, psiquiatras e pedopsiquiatras pela vida fora”.
As escolas açorianas têm um rácio de psicólogos por aluno muito superior à media nacional, adiantou a secretária regional de Educação, indicando que há um psicólogo para cada 542 alunos açorianos (mais 28% do que no continente). As turmas também são muito mais pequenas: “No 1.º e 2.º ciclos, uma turma padrão tem 18 alunos”, exemplificou.
No entanto, a taxa de abandono escolar precoce no arquipélago é quase três vezes superior à media nacional (8%), um fenómeno que “ninguém sabe explicar”, constatou o sociólogo Fernando Diogo.
O investigador está a desenvolver um projeto informal que aponta como hipótese o tecido social do arquipélago, onde há mais pobreza e menos escolaridade: A pobreza atinge 26,1% dos habitantes e a maioria da população não concluiu o 9.º ano.
Alexandra reconheceu que “não nasceu num berço de ouro” e o seu “projeto de futuro é concluir o 9. ano”, emigrar e trabalhar muito.
Também Erico Pontes, agora com 20 anos, nasceu e cresceu numa família pobre e só quer fazer o 9.º ano. Nessa altura, deverá voltar a integrar as estatísticas do abandono escolar precoce, que contabiliza os jovens entre os 18 e os 24 anos que deixaram de estudar sem concluir o secundário.
Apesar destes casos, as estatísticas mostram uma melhoria desde o início do século. No ano passado, a taxa rondou os 27% e este ano desceu para 21,7%. Sofia Ribeiro disse que é “bastante animador”, mas reconheceu que ainda “é preciso continuar a trilhar esse percurso”.