Estava a estudar em Económicas quando o 25 de abril de 1974 mudou Portugal, vivi este dia, primeiro com um misto de preocupação, quanto ao desfecho possível que a revolta militar liderada por Salgueiro Maia poderia ter, e depois com alívio e alegria quando tomei consciência que o golpe militar tinha triunfado. Esta minha certeza foi construída no Largo do Carmo, no próprio dia 25 de abril, sim porque eu fui um dos que vivi em direto este momento histórico, precisamente no local mais simbólico daquela mudança estrutural política ocorrida há 50 anos, com a rendição do então Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, aos representantes do Movimento das Forças Armadas. Naquele momento, participei em direto com os militares e milhares de populares que entretanto se dirigiram para o Largo do Carmo, ao fim de um regime político, na fase final dito de transição, que tinha sido possível com a queda da cadeira de Salazar no dia 3 de agosto de 1968 no forte de Santo António da Barra, no Estoril, e com a ascensão de Marcelo Caetano a Presidente do Conselho, prometendo uma Primavera de desenvolvimento económico e social, abertura política, mas mantendo a Guerra Colonial e toda a política que a sustentava, ora uma equação de resolução impossível, já que era impraticável garantir esta abertura e desenvolvimento e mantendo ao mesmo tempo a guerra colonial, como se viria a demonstrar durante a chamada Primavera Marcelista, já que Marcelo Caetano, cedeu e colapsou em toda a linha perante os duros do regime, favoráveis à manutenção da linha ortodoxa do colonialismo, não poupando sequer os colegas da Assembleia Nacional referenciados como Liberais e que acreditavam na mudança do Estado Novo a partir de dentro, crença que alguns deles abandonaram, ainda mesmo antes do 25 de abril. Em síntese, os poucos avanços a que se assistiram na Primavera Marcelista foram rapidamente engolidos pela repressão e continuação da autarcia do País.
Económicas, como era conhecido o Instituto Superior de Economia (ISE), cujo nome tinha substituído o do Instituto Superior de Economia e Finanças (ISCEF), já que esta mudança logo no início dos anos 70 refletia o pensamento de então de que a economia, incluía as finanças e a gestão, não fazendo sentido autonomizar o ramo das finanças. O ISE pertencia à Universidade Técnica de Lisboa, legítimo herdeiro das Aulas do Comércio do Marquês de Pombal, e o mais antigo estabelecimento do ensino superior de economia, fornalha dos ministros das Finanças de Portugal, em meados dos anos 60 converteu-se num local de referência do pensamento, da reflexão e mesmo da contestação ao Estado Novo, já que muitos que lá ensinavam e estudavam, recusavam viver num País em que o pensamento dominante não admitia que se questionasse e nem sequer discutisse a religião, a pátria, a autoridade, a terra, o trabalho, o capital, e a guerra colonial, e quem o fizesse tivesse de ir parar à PIDE, ao Governo Civil e a Caxias (lugar tenebroso que eu conheci, tendo como colega de cela o Eduardo Leite Pacheco, um companheiro reservado, de poucas palavras, mas de uma grande firmeza de carácter, e que mais tarde se confirmaria como um excelente profissional da medicina). Retomando este episódio, a prisão política a que fomos sujeitos foi fundada numa denúncia e mentira de que teríamos distribuído, isto logo imediatamente a seguir ao 25 de abril, comunicados nos quartéis a apelar à recusa dos soldados irem combater para as colónias, o que poderia ter acontecido, mas não aconteceu. Foi um período curto em Portugal, em que alguns em nome do Povo queriam substituir uma ditadura por outra, intenção de que felizmente para todos foi gorada, injustiça que eu já esqueci, inclusivamente no meu íntimo já perdoei, ao suposto denunciante que ao que me dizem ainda anda por aí. Naqueles dias de privação da liberdade, muitas vezes me interroguei como era possível antes do 25 de abril ter escapado à prisão e agora estar naquela situação – preso. Para finalizar este capítulo, recordo que fomos libertados com a mesma leviandade como fomos presos, já que nunca fomos informados e acusados formalmente de nada.
Económicas no início dos anos 70 era a Meca dos estudantes universitários das outras Faculdades que contestavam o Regime e foi neste contexto que em 1972 foi “assassinado o Ribeiro Santos pela PIDE em plenas instalações de Económicas”, um estudante que tinha vindo da Faculdade de Direito para participar numa reunião política naquela que viria a ser a minha escola em 73, já que antes estudava no Instituto Comercial de Lisboa, percurso obrigatório para os estudantes das saudosas Escolas Industriais e Comerciais, para irem para a Faculdade, como era o meu caso.
Entro em Económicas num ambiente de forte contestação ao Estado Novo, com vários colegas presos, tendo sido já com uma consciência política muito formada que assisti e participei no 25 de abril, a que acresce não ter naquela altura qualquer ilusão quanto ao papel que o Estado Novo tinha reservado para os Açores, e de que era, dispor aqui de uma reserva de recrutamento de mancebos para a guerra colonial, e um lugar de excelência para o fornecimento de leite em pó para as tropas portuguesas a combater em África, e quanto ao desenvolvimento económico e social dos Açores era esquecer isto, aliás, a Democracia, a Liberdade, os Direitos Económicos e Sociais, a Autonomia e a Universidade dos Açores só foram possíveis nos Açores graças ao 25 de abril e naturalmente à luta dos açorianos.
De referir que o meu quarto em Lisboa nos anos que imediatamente antecederam o 25 de abril era um porto de abrigo de muitos colegas meus, furnenses, da escola primária, que faziam uma última paragem na capital do País antes de irem para a guerra colonial. Eram sempre momentos dramáticos, porque nunca sabíamos se regressavam e neste contexto, era frequente questionarmos o porquê daquela guerra?, aliás, pelo menos 2 furnenses ( os primos José Joaquim Bettencourt e o José Oliveira), recusaram-se a ir combater para as colónias e deram o salto para o estrangeiro, mudando totalmente o rumo das suas vidas, e integrando lá fora Comités de luta contra a guerra colonial. Já depois do 25 de abril vieram cumprir o serviço militar. Este sentimento antiguerra colonial reforcei-o quando conheci e convivi com vários estudantes das ex-colónias, sendo que ainda hoje sou amigo de alguns deles.
As Furnas sempre foram um viveiro de referência de pessoas que contestaram o Estado Novo de que recordo com muita saudade Benjamin Rodrigues, António José Galante, José de Sousa, e António Arruda, reforçados por não furnenses, mas que mantinham com o Vale fortes relações de afetividade e até familiares como eram os casos de Jaime Gama, Angelino Páscoa, e Melo Antunes, e que me ofereceu o primeiro livro marcadamente político que li, sobre o Estruturalismo de Rosa Luxemburgo.
Finalmente, de referir que Económicas (ISE/ISEG) do Quelhas em Lisboa, fica mesmo ao lado da Assembleia Nacional, hoje a Assembleia da República e que já depois do 25 de Abril, como Docente do ISE, o meu gabinete de trabalho, o 510, ficava quase ao lado do Professor Francisco Pereira de Moura, o 508, no edifício Bento Jesus Caraça, um edifício que tinha sido construído de raiz para residência dos deputados da Assembleia Nacional vindos da “Província, das ilhas Adjacentes, e das Províncias Ultramarinas”, “ocupado” na altura, reforçando agora o Complexo do ISE/ISEG (O ISEG substituiu o nome do ISE, acrescentando a Gestão), e também muito próximo da velha Emissora Nacional, onde já em Democracia o nosso primeiro presidente do Governo Regional dos Açores, João Bosco Mota Amaral anunciou ao País e aos Açores, a intenção de criação do PPD Açores, fazendo nesta data parte da Comissão de Gestão desta Emissora Nacional em representação do Movimento das Forças Armadas o nosso conterrâneo Jaime Gama, então, militar de Abril, um jovem por quem Mota Amaral tinha intercedido quando esteve preso pela PIDE, e como nos revelou o outro nosso conterrâneo Mário Mesquita, no Teatro Micaelense, pouco tempo antes de ter falecido.
Nesta comemoração dos 50 anos do 25 de abril, importa reter que nem tudo correu como gostaríamos, algumas expetativas foram mesmo defraudadas, mas indiscutivelmente fizeram-se avanços civilizacionais importantes, no campo das liberdades, no combate à mortalidade infantil, nos direitos das mulheres, mesmo no acesso ao ensino a todos os níveis e sobretudo permitiu dispormos de instrumentos hoje em Democracia capazes de corrigir e melhorar comportamentos e percursos, assim os saibamos interpretar e executar.